Descrição de chapéu
cartas pela democracia

Atos na USP historizam democracia mais plural e pungente, porém ainda contraditória

Manifestos unem quem, discordando, está disposto a lutar pela democracia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O Brasil de 2022 é melhor do que o de 1977, disso não tenhamos dúvidas. O Brasil de hoje exibe —ao invés de escamotear— suas contradições e suas diversas cores. Na Direito-USP nesta quinta-feira (11) e em diversas outras universidades Brasil afora, todas as contradições do país se fizeram presentes compondo este samba com sabor de elegia a que chamamos Brasil.

Do oximoro de trabalhadores manifestando ao lado de banqueiros se fez a pungência de um país disposto a lutar pelo direito a ter direitos. Eis os três atos que pude ver hoje na USP.

Vista geral da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, centro de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

Ato 1. Na primeira parte do manifesto pela democracia, ocupando as centenas de cadeiras no Salão Nobre da faculdade de direito da USP, transcorreu a festa reservada para quem tinha pulseirinha no braço e nome na lista. O espaço limitado não pode nos levar a trivializar a magnitude do ato: defender as regras do jogo democrático implica defender a possibilidade de coexistir na discordância e é disso que se tratou o ato.

Nos discursos sob os olhos atentos de pinturas enormes de heróis brancos, milhões de trabalhadores representados pelas centrais sindicais lembraram a ditadura da fome; lideranças da sociedade civil lembraram que cuidar da democracia é responsabilidade de todos; a Coalizão Negra por Direitos lembrou —sob aplausos efusivos da plateia majoritariamente branca— que com racismo e genocídio indígena não há democracia; acadêmicos lembraram que universidade é o oposto do autoritarismo; juristas lembraram que é preciso lutar pelo estado de direito sempre.

Ato 2. Durante as falas no Salão Nobre abafadas por aplausos constantes e pela maciez dos assentos almofadados de estilo neocolonial, milhares de estudantes, movimentos sociais e sindicalistas ocupavam o entorno da faculdade de direito. Cartazes verdes e amarelos pedindo "respeite o voto, respeite o povo" compunham o tecido democrático das ruas do centro de São Paulo, ao lado de barracas de sindicalistas distribuindo pães, estudantes com enormes faixas do movimento estudantil, vivo e forte.

Ato 3. Na parte derradeira do manifesto pela democracia, uma população mais plural do que a do Salão Nobre ocupou o chamado "Território Livre" da Direito-USP, o grande pátio interno com um púlpito permanente em prol da liberdade de expressão.

Locais históricos são feitos de concreto e de memória. No caso das Arcadas da Faculdade de Direito da USP, a história se vê no concreto das grandes pilastras que engessam em cada parte daquele lugar a memória antiditatorial: o púlpito de onde Goffredo da Silva Telles Jr. leu a "Carta aos Brasileiros", de 1977, desafiando a ditadura militar.

Nas Arcadas da USP, a leitura da "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito" foi fatiada na liturgia secular de um Brasil futuro muito diferente de 1977 e que ainda não vingou.

De início, a potente voz de Manuela de Morais Ramos, presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto da Direito-USP, no melhor discurso de toda a manhã: "Não queremos a democracia da fome, a democracia das chacinas e a dos ricos. Queremos a democracia da diversidade, dos trabalhadores, uma democracia real".

Nas Arcadas da USP, o passado e o presente ocuparam o palco. Líderes da carta de 1977 foram chamados ao púlpito, mostrando que ainda vivem os que primeiro tiveram nojo e ódio à ditadura. Em seguida, três das poucas professoras da Direito-USP —Eunice Aparecida de Jesus Prudente, a única docente negra nestas Arcadas, Maria Paula Dallari Bucci e Ana Elisa Bechara– tomaram o palco ao lado de um dos signatários da carta de 45 anos, advogado Flávio Bierrenbach.

A leitura em jogral e majoritariamente feminina da carta de 2022 mostrou que, hoje, a democracia só se pode fazer harmonizando diferenças, e não em uníssono, ou democracia não será.

Momentos são históricos porque deixam na memória um sabor agridoce que sobrevive além de nós. Das Arcadas da USP, experimentei a doçura de um país que é melhor do que o presidente que o tenta implodir e o amargo de que o futuro, se quisermos ter um, está em perceber que os três atos –dos nobres assentos, das ruas em efervescência e do palco mais plural– devem compor um único ato, ou democrático não serão. É nos corredores que abrem as Arcadas da USP às ruas que mora a democracia que o punho cerrado dos estudantes durante a execução do Hino Nacional anuncia.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.