Sinal de L feito por traficantes não é referência a Lula e, sim, saudação de grupo que atua no Rio

Gesto simboliza inicial de apelido de criminoso que desapareceu no início dos anos 2000

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São Paulo

É falsa a associação criada entre traficantes fazendo a letra L em vídeo de reportagem com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que usa a letra inicial de seu nome na campanha eleitoral. O gesto é uma referência a um líder da facção ADA (Amigos dos Amigos), Paulo César Silva dos Santos, conhecido como Linho e que desapareceu no início dos anos 2000. O grupo criminoso, que atua no Rio de Janeiro, é uma dissidência do Terceiro Comando e rivaliza com o Comando Vermelho.

Como verificado pelo Projeto Comprova, o conteúdo investigado foi compartilhado em plataformas de vídeo sem fazer referência a Lula, porém, induz a interpretações equivocadas pelos internautas, uma vez que a gravação foi cortada, dando destaque aos traficantes que fazem o L, e não informa o contexto original do material. Apesar de publicada às vésperas do segundo turno, na verdade trata-se do trecho de uma reportagem exibida pela TV Record em 2018 —isto é, quatro anos antes do atual período eleitoral.

Já no WhatsApp, a mensagem circula com uma foto de Lula, cuja imagem é acompanhada de chifres e uma frase atribuída ao ex-presidente: "Esse é meu garoto, mó orgulho de você, companheiro!"

Fotografia colorida mostra quatro homens negros com algemas fazendo o gesto "L" com as mãos.
Captura de tela da reportagem citada em conteúdo falso - Reprodução Kwai

Imagens do mesmo vídeo também foram usadas na propaganda de TV do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), estabelecendo uma relação indevida dos traficantes com seu adversário na disputa.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e tenha sido divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Alcance da publicação

O Comprova investiga conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 19 de outubro, a publicação obteve no Kwai mais de 860 mil visualizações, 48,7 mil curtidas e outros 14,2 mil compartilhamentos.

No TikTok, foram 603 mil visualizações e 13,4 mil curtidas, enquanto a postagem no Twitter registrou a menor performance, com pouco mais de 200 interações. Já no WhatsApp, não há possibilidade de medir o alcance.

O que diz o autor

A verificação entrou em contato com o perfil Mundo d@s News pelo Kwai, mas não houve resposta até a publicação desta checagem. Também tentou contato com a conta do TikTok que postou o vídeo na plataforma, Willianlima3513, porém, não é possível o envio de mensagens entre perfis que não se seguem mutuamente.

Como verificamos

Buscamos no Google pelas palavras-chave "traficantes", "sinal", "L" e "Lula". Entre os resultados, o primeiro foi a verificação do De Fato, do SBT, que em setembro já desmentia a relação do gesto feito por traficantes com Lula. A publicação também explicava que o símbolo é usado pela facção ADA, numa referência a um de seus líderes, Linho.

A consulta ainda retornou reportagem do The Intercept, que descreve a atuação dos grupos criminosos no Rio de Janeiro e esclarece o uso do L.

Em uma nova pesquisa, agora com o termo "ADA", entre os principais resultados foram encontrados uma postagem no Twitter, de 2020, também falando sobre a simbologia da letra na facção, e um vídeo postado em 2021, no canal do YouTube "ADA do Linho", com um funk intitulado "Faz o L Só Quem É ADA Até Morrer", que traz essa mesma frase em quatro momentos da composição.

A partir de informações contidas no conteúdo aqui investigado, chegamos ao vídeo original, que é uma reportagem da TV Record sobre a prisão de traficantes no Complexo do Alemão, em 2018.

A reportagem também entrou em contato com o especialista em segurança pública e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense ) Lenin Pires para explicar a razão que leva determinado grupo de traficantes a fazer a letra L com as mãos, e ainda a assessoria de Lula, para se manifestar sobre o caso, mas não houve resposta.

Por fim, a equipe procurou o responsável pela postagem do vídeo no Kwai, tanto pela ferramenta de bate-papo quanto pelos comentários, mas não houve retorno. A reportagem ainda tentou contato com o perfil que inseriu o vídeo no TikTok, porém a plataforma não permite troca de mensagens entre usuários que não se seguem mutuamente.

O vídeo

É o trecho de uma reportagem da TV Record, veiculada em agosto de 2018 sobre a prisão do traficante Marcos Vinicius Tostes da Silva, conhecido como Pitbull ou MV e apontado pela polícia como chefe do tráfico no Morro do Urubu, zona norte do Rio de Janeiro. A gravação original, que tem 2 minutos e 27 segundos, mostra o criminoso e também outros traficantes fazendo a letra L com as mãos em uma foto.

Já o conteúdo investigado tem menos de um minuto e o corte do vídeo destaca justamente o gestual dos criminosos. Em uma das publicações, o trecho é acompanhado da frase "Traficantes fazem o L" e, em outra, está acompanhada da foto de Lula e uma frase atribuída ao presidenciável como se estivesse elogiando Marcos Vinicius.

Significado do gesto

Ao contrário do que sugere a publicação falsa, a letra L usada por traficantes não tem relação com Lula, mas sim com a facção criminosa Amigo dos Amigos, criada sob a liderança de Paulo César Silva dos Santos, o Linho. A inicial do apelido do criminoso (Linho) foi o que motivou o gestual dos traficantes.

Professor do Departamento de Segurança Pública da UFF, o antropólogo Lenin Pires ressalta que o ADA sempre fez o L, justamente pela alusão a um de seus fundadores. "Linho é uma figura histórica, importante, que procurou estabelecer essa identidade, alternativamente a uma dissidência, um racha em relação tanto ao Terceiro Comando como também a determinados segmentos do Comando Vermelho. No Amigo dos Amigos, o Linho é uma referência", explicou. O traficante desapareceu em janeiro de 2003, em São Paulo, porém, a marca ficou.

Uma reportagem do The Intercept, de dezembro de 2018, sobre facções no Rio de Janeiro já trazia a informação de que os traficantes usavam o L como símbolo do grupo criminoso.

Dois anos depois, no Twitter, o The Intercept fez um fio sobre as facções do Rio, mencionando a diferença de comportamento e de vocabulário. Mais uma vez explicava o uso da letra L e citava também a utilização de diversos símbolos e expressões que identificam outras facções. Essa é uma prática comum a esses grupos, como mostra reportagem do Extra, de 2015, ao revelar que o "RL" de pichações e citações no Rio era uma referência a Rogério Lengruber, um dos fundadores do Comando Vermelho.

Na campanha

Em uma de suas propagandas de TV, Bolsonaro usa o trecho do mesmo vídeo para tentar estabelecer, de maneira indevida, a relação de Lula com traficantes. A peça trata da votação em presídios e nela aparece o traficante Pitbull fazendo o L.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou a retirada da propaganda do ar, após atender a petição feita pela equipe jurídica da coligação de Lula que apontava, entre outras irregularidades, manipulação de dados sobre a votação em ambientes prisionais.

Por que investigamos?

O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam na internet relacionados às eleições presidenciais de 2022, à pandemia e a políticas públicas do governo federal. O conteúdo aqui investigado usa imagens de uma reportagem de 2018 para associar falsamente o L feito por traficantes ao apoio ao candidato à Presidência da República Lula. A disseminação de peças de desinformação é uma prática nociva à democracia, porque a população tem direito de fazer suas escolhas baseadas em conteúdos confiáveis.

A investigação desse conteúdo foi feita A Gazeta, Alma Preta, Tribuna do Norte, Plural Curitiba e SBT e publicada em 19 de outubro pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 43 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Folha, UOL, Estadão, CNN Brasil, Estado de Minas, Metrópoles, Correio do Estado e O Dia.

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