Nikolas é um tema pequeno, queremos fazer o grande debate, diz Duda Salabert

Deputada do PDT afirma que limitar parlamentares trans apenas ao debate identitário serve à lógica que elegeu Bolsonaro

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Brasília

A deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) tomou posse no dia 1º de fevereiro, ao lado de Erika Hilton (PSOL-SP), marcando na história a primeira eleição de mulheres transexuais para a Câmara dos Deputados.

Aos 41 anos, a professora de literatura e ex-vereadora de Belo Horizonte condena o discurso transfóbico de Nikolas Ferreira (PL-MG), o deputado federal mais votado do país, mas afirma que o colega de bancada é um tema pequeno e que é preciso partir para o grande debate político.

No dia da Mulher, Nikolas subiu à tribuna da Câmara com uma peruca loira e fez um discurso transfóbico contra mulheres transexuais.

"Não fui eleita para isso. Eu sou a deputada federal mais votada da história de Minas Gerais, a gente quer discutir a grande política."

Salabert diz que ser atraída para a "necropolítica" que ela enxerga em Nikolas apenas reproduz a lógica que elegeu Jair Bolsonaro (PL).

Deputada Duda Salabert, de blusa preta e jaqueta verde, posa para foto no corredor dos gabinetes da Câmara
A deputada federal Duda Salabert (PDT-MG), no corredor onde fica seu gabinete, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

O que a sra. acha que levou 1,5 milhão de mineiros a votar em um deputado cuja primeira manifestação de relevo em Brasília foi subir à tribuna e fazer um discurso transfóbico e que é considerado crime desde 2019 por decisão do Supremo Tribunal Federal? O Brasil estava extremamente polarizado na última eleição. O Bolsonaro já havia escolhido o Nikolas para ser o deputado federal dele, então muito disso se deve à dobradinha de voto.

Ele [Nikolas] também tem um potencial de comunicação muito grande, domina muito bem as ferramentas das redes sociais, e há que se discutir também que o algoritmo [das redes sociais] favorece um discurso de ódio.

O algoritmo favorece o discurso que violenta e rechaça grupos historicamente marginalizados. Por isso é preciso fazer um debate mais profundo no Brasil e no mundo sobre como essas tecnologias podem afetar de certo modo a democracia.

Mas Minas Gerais também fez de mim a deputada federal mais votada da história, e eu digo que a minha eleição se deve primeiro a um projeto de debates estruturantes sobre questões nacionais e questões estaduais.

Como foi a convivência com Nikolas na Câmara Municipal de Belo Horizonte? Logo no início, quando eu me tornei a pessoa mais bem voltada da história de Belo Horizonte [37.613 votos] e ele ficou em segundo lugar [29.388 votos], eu liguei para ele. Porque eu percebi que o jornalismo daquele contexto, quando nós não tínhamos criado polêmica nenhuma, estava criando uma narrativa de reproduzir entre mim e ele uma dicotomia odiosa que foi construída entre Jair Bolsonaro e Jean Wyllys [ex-deputado do PSOL, hoje no PT, que vivia sob escolta policial devido a ameaças e que deixou o Brasil em 2019].

E nós vimos o resultado dessa narrativa, né? Tivemos Marielle Franco executada [a então vereadora do PSOL foi assassinada em março de 2018].

Aí na época eu liguei pro Nikolas e falei: "Olha, que briguem as ideias e não as pessoas". Disse para a gente passar para um debate sobre projetos para Belo Horizonte, mas ele nunca respeitou esse pedido. É uma marca de como esses grupos da ultradireita se organizam, se aproveitando de pautas especificamente de pessoas travestis e transexuais para se promover e conseguir mais engajamento.

Ele nunca participou no debate comigo sobre o projeto de cidade, de educação, empregabilidade, geração de renda, mobilidade urbana, saneamento básico. Ele estava presente somente nesses debates de ordem moral, que quer é discutir linguagem neutra, banheiro.

O que a sra. diria às mulheres transexuais que foram atingidas por esse discurso? Nós, pessoas travestis e transexuais, nós não estamos preocupadas com Nikolas, estamos preocupados com garantir a dignidade mínima para nossa existência. Até 200 anos atrás negros e negras não eram reconhecidos como humanos pelo Estado brasileiro. E hoje nós, pessoas travestis e transexuais, não somos reconhecidas como humanos, porque a gente está lutando por questões básicas que ainda não conquistamos.

Por exemplo, 90% das travestis e transexuais no país estão na prostituição, porque nós somos alijadas do mercado de trabalho. Em Belo Horizonte, há um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais que mostra que 90% das travestis e transexuais não concluíram o ensino médio. O que mostra que não existe evasão escolar para pessoas trans, o que existe é a expulsão escolar.

Estamos falando de uma população em que 6% das travestis e transexuais de Belo Horizonte foram expulsas de casa com menos de 13 anos de idade.

Acho importante dizer que nós, pessoas travestis e transexuais, debatemos sobre economia. Então seria importante, por exemplo, jornais como a Folha de S.Paulo e outros nos procurarem para discutir, por exemplo, sobre nossa perspectiva sobre a reforma tributária, sobre o que nós achamos da Lei Kandir [que trata de isenção de impostos para exportação], sobre um plano que defendemos de diversificação econômica para municípios mineradores, a visão que nós temos sobre a crise climática.

Esses debates no ponto de vista moral estão reproduzindo uma lógica de nos reduzir, de nos caricaturar e de nos colocar exclusivamente para debater temas como Nikolas, que é um tema pequeno. Eu não fui eleita para isso. Eu sou a deputada federal mais votada da história de Minas Gerais, a gente quer discutir a grande política.

Já olharam os projetos que eu apresentei em Minas Gerais e foram aprovados? Eu tive reunião com quatro ministros essa semana, antes do Dia das Mulheres, para discutir pautas importantes para o crescimento do Brasil.

É isso que é o grande debate, que a gente quer fazer. Não mais discutir a necropolítica, que está a serviço exclusivamente de reproduzir uma lógica que elegeu Bolsonaro presidente.

Em seu mandato em Belo Horizonte, a sra. se sentiu alijada desses outros debates? Em Belo Horizonte a gente teve inicialmente uma dificuldade com setores da mídia de mostrar que nós somos para além da questão identitária. E aí nós conquistamos espaço, a partir de um processo legislativo de qualidade e de uma atuação que reverberou até em esferas internacionais, em defesa das serras e da segurança hídrica de Minas Gerais.

Então a gente tem que mostrar agora na esfera nacional que nós não somos um mandato meramente identitário. Nós somos um mandato climático, eu estou disputando a presidência da comissão de Meio Ambiente.

A pauta identitária, a história e o debate sobre a comunidade de pessoas travestis e transexuais eu já carrego no próprio corpo e na minha construção política. É um debate fundamental que nós vamos promover.

Quais são as suas primeiras impressões aqui da Câmara? A gente tem construído bastante coisa com o Executivo, para as questões emergenciais, como a ambiental. Nós já tivemos algumas reuniões com a ministra Marina Silva, e encontramos nessa semana com o ministro dos Direitos Humanos [Silvio Almeida] também. Estou tendo uma recepção muito boa de modo geral.

Sofreu algum tipo de preconceito? Para nós, que somos grupos mais marginalizados, estigmatizados, a gente costuma dizer que transfobia e preconceito tem até no céu. Se eu vou daqui até a padaria comprar pão eu vou sofrer inúmeras violências simbólicas, em olhares, em piadas. Infelizmente isso faz parte da estrutura de formação do país. Mas nenhum preconceito que impossibilitou uma construção política ou que que me afetou profundamente.

Somente esse episódio no dia 8 de Março, que é um ataque não só contra as travestis, não só contra as mulheres, é um ataque contra o Parlamento e contra a política.

Nós vivemos a maior crise socioeconômica e climática da história do Brasil. O que se espera do Parlamento é um debate sobre a grande política. E no dia 8 de Março, um debate sobre a desigualdade de gênero, que resulta em violências contra as mulheres. E não usar o palanque para fazer deboche, sátira e ridicularizar as mulheres travestis e transexuais.

Por isso acionamos o Supremo Tribunal Federal e o Conselho de Ética. Episódios como aquele acabam estimulando é violência contra grupos já violentados e reforçando no imaginário popular a ideia de que a política é o espaço da zoação, da avacalhação, do deboche.

A família Bolsonaro foi objeto do Conselho de Ética diversas vezes e nada aconteceu. Tem expectativa de que isso mude? A gente não luta com certeza ou esperando a vitória, luta porque tem que lutar. Eles podem até vencer, mas a certeza que nós temos é que nunca vamos nos ajoelhar. Eu sei o que o Conselho de Ética foi historicamente, mas há outra realidade no Brasil. A vitória do Lula foi também a derrota de um projeto político que a sociedade não tolera mais, que é marcado justamente pela intolerância, pelo ódio.

Há uma outra conjuntura que respinga, por exemplo, na posição do Artur Lira [presidente da Câmara] ao criticar a posição do Nikolas e prestar sua solidariedade a quem foi ofendida.

O Congresso tem uma maioria conservadora. A sra. tem perspectiva de ser ouvida? O nosso mandato tem três grandes plataformas. Meio ambiente, educação e direitos humanos. E, no campo de direitos humanos, nós temos preocupação muito grande com a segurança pública, por isso vou fazer parte da comissão de Segurança Pública.

A sra. pensaria em refazer aquele telefonema de 2020? Sou professora de literatura há mais de 20 anos. Eu conheço o papel da palavra e da linguagem na construção de uma outra sociedade e de outras existências. Eu entendo que toda vez que a palavra falha, a violência entra em cena.

Aprendi com o Leonel Brizola que nós temos que aprender e apertar a mão de todos sem sujar as próprias mãos. Então, eu converso com todo mundo, eu mostro a tese, o outro lado, a antítese, e o plenário escolhe a síntese. É assim que se constrói a política.


Raio-X | Duda Salabert, 41

É formada em Letras e por cerca de duas décadas deu aulas de literatura a alunos do ensino médio na capital mineira. Em 2020, foi a candidata mais votada à Câmara Municipal de Belo Horizonte, se tornando a primeira vereadora transexual da cidade. Em 2022, ficou na terceira posição do ranking de deputados federais eleitos por Minas, com 208.332 votos. Ela e Erika Hilton (PSOL-SP) são as primeiras mulheres trans a ocupar uma cadeira na Câmara.

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