Descrição de chapéu Governo Lula forças armadas

'Motor democrático' no Brasil e portas para minorias são vistos como avanço em 100 dias de Lula

Comparação com tempos soturnos de Bolsonaro favorece petista, mas há cobranças por mais espaço e queixas de inação e incoerência

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São Paulo

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu a faixa presidencial, cem dias atrás, das mãos de Raoni, um cacique nonagenário, uma criança de dez anos, uma catadora de lixo, um professor, um artesão, um metalúrgico, uma cozinheira e um influencer da luta anticapacitista.

A recusa de Jair Bolsonaro (PL) em lhe transmitir o cargo foi lida, na época, como uma oportunidade de acenar para a superação de tempos soturnos para minorias e a própria democracia brasileira.

Especialistas e ativistas que operam no campo democrático são unânimes em dizer que o pior ficou para trás. Não que fosse uma tarefa hercúlea, tendo como antecessor um rival que, na campanha, sintetizou em uma fala muito do que pensa sobre o tema: "Porra... Aonde nós iremos? Cedendo para as minorias... As leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias. As minorias têm que se adequar".

Mas, se a comparação com Bolsonaro deixa o petista bem na fita, cobranças por inação, mais espaço e incoerência também deram as caras nesta sua terceira encarnação no Planalto.

O presidente Lula durante visita a casa de saúde indígena em Roraima, durante a crise na terra yanomami - Ricardo Stuckert via Reuters

Também causa ruído Lula defender a democracia no Brasil enquanto é no mínimo leniente com ditaduras de velhos camaradas da esquerda, da Venezuela à Nicarágua.

Para começo de conversa, é preciso considerar que a administração anterior "fez terra arrasada na democracia e nas convenções mínimas de civilidade", afirma o professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha.

Bolsonaro, segundo Conrado, deixou um Estado desossado e exigiu que instituições assumissem um lado, como as Forças Armadas e policiais. Inverteu valores institucionais ao pôr alguém que desacreditava o racismo à frente do órgão destinado a combatê-lo, um negacionista climático no Ministério do Meio Ambiente, um militar e depois um médico que minimizou a pandemia na Saúde.

"Foram anos em que professores, jornalistas e a sociedade civil foram tratados como inimigos de um projeto político de embrutecimento." Coube a Lula nesta largada, diz, "tentar religar o motor democrático".

O petista deu "passos enormes" até aqui, diz, mas precisa evitar tropeços. "O governo terá a atribuição de fazer três grandes nomeações neste ano: duas ao Supremo Tribunal Federal e uma à Procuradoria-Geral da República. Será fundamental não morder a isca de que todos os problemas do sistema de Justiça se reduzem à estúpida dicotomia do 'lava-jatismo X antilava-jatismo'."

O professor de ciência política da UFMG Cristiano Rodrigues equipara o governo com o que o MDB liderou na Constituinte, enterrada a ditadura militar. São papéis similares: "Pavimentar o caminho para que voltemos a fortalecer as instituições".

"A democracia brasileira chegou a um ponto próximo da ruptura entre a eleição e o 8 de janeiro", diz Leonardo Avritzer, seu colega na ciência política da universidade mineira. Aconteceu quando Bolsonaro não admitiu a derrota eleitoral, quando seu PL tentou em vão a via judicial para anular votos, nos vários atos antidemocráticos e, como grand finale, os ataques em Brasília uma semana após a posse de Lula.

Ponto para Lula aqui, afirma Rodrigues. Primeiro porque ele busca um maior e melhor diálogo entre os três Poderes, após quatro anos de pugilato entre o Judiciário e Bolsonaro, que chegou a xingar de canalha o ministro do STF Alexandre de Moraes, que depois assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral.

Segundo porque, sob seu governo, imprensa e opinião pública têm mais espaço para "debates que vão além de 'vai ou não ter golpe'".

E as discussões vieram em várias áreas, como gênero e raça. Lula bateu o recorde ao anunciar 11 mulheres na Esplanada —Bolsonaro começou seu governo com duas. Mas 11 não é nem um terço dos ministérios, lembraram críticos e também aliados. O mesmo com a presença de negros, aquém da igualdade almejada.

O presidente vem sendo instado, agora, a diversificar um STF quase todo branco e masculino. Mas já sinalizou predileção por seu advogado Cristiano Zanin, homem branco, na próxima vaga.

Professor da USP e presidente da Radiobrás na primeira gestão lulista, Eugênio Bucci aponta "bons sinais, mas ainda vagos", na área da comunicação.

Elogia "o compromisso claro de combater a desinformação, a volta de um convívio civilizado com a imprensa e um projeto de organização republicana da EBC", a mídia estatal, "palco de propaganda autoritária desbragada" sob o jugo bolsonarista.

Ainda falta clareza, contudo. "Bem sabemos que a mesma vagueza se observa em outras áreas. No setor do meio ambiente, por exemplo, não há fiscalização instalada para fazer frente ao desmatamento. Esse atraso é compreensível, uma vez que a máquina pública ainda está destroçada."

Bucci propõe que a Presidência retome um porta-voz oficial, "que livraria o presidente de ter que dar declarações demasiadas sobre todos os assuntos e mais um pouco". Se conceder entrevistas regulares é essencial, também o é evitar falas provocativas, diz. "Se enveredar por aí, perde sua condição essencial de árbitro sereno."

Uma das derrapagens mais mal avaliadas de Lula, mesmo entre aliados, envolve Sergio Moro, que enquanto juiz o enquadrou na Lava Jato, depois virou ministro bolsonarista e hoje é senador pela União Brasil-PR.

O petista disse em março que, quando estava preso, deu-se a meta de "foder esse Moro". Adicionou lenha à fogueira ao sugerir dias depois que o plano do PCC de atacar o ex-magistrado, revelado pela Polícia Federal, era "uma armação" do próprio. Fake news.

"Se houver persistência em 'ressuscitar' o Moro, o governo pode ser visto como revanchista", diz Rodrigues, da UFMG.

Representantes de minorias convergem ao dizer que com Lula estão a anos-luz do rebuliço bolsonarista, embora cobrem mais orçamento e representatividade.

Saiu um presidente que chegou a dizer que "nem para procriador" um quilombola servia mais, entra outro que nomeia Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle, para a pasta da Igualdade Racial.

Lula também editou decreto para que negros ocupem ao menos 30% dos cargos de confiança no governo e derrubou uma medida de Bolsonaro que barrava homenagem oficial a negros vivos, como Gilberto Gil. Também revogou portaria de 2022 que dificultava o reconhecimento dos quilombos no Brasil.

"Seremos incansáveis até que todas as famílias negras possam ter direito à terra, à sua memória, ao seu sagrado e ao seu futuro", diz Anielle.

Ativistas, contudo, querem mais representação nas altas esferas do poder. Como no STF.

O subfinanciamento de pastas voltadas a minorias, ressaltam especialistas, já era um problema em gestões passadas do PT e por ora se repete.

Presidente da Aliança Nacional LGBTQIA+, Toni Reis comemora a recriação de um conselho federal para o campo. "A empatia voltou." Renato Viterbo, vice-presidente da Parada do Orgulho LGBT+, vê disposição do governo, mas fala em "sanar o problema da falta de funcionários" em órgãos que zelam pela diversidade.

Valtin Parakanã, líder indígena, diz que "Lula está fazendo muita coisa boa para a gente", como criar o Ministério dos Povos Indígenas e pôr um deles para presidir a Funai. Mas ainda "não está 100%", ressalva. "Nossa terra continua invadida por garimpeiro, grileiro."

Outra esfera insatisfeita com os anos Bolsonaro celebrou o retorno do Brasil ao Pacto Global de Migrações da ONU, abandonado em 2019, medida que horrorizou quem defende imigrantes e refugiados. "Uma marca daquele governo foi o ‘passar a boiada’, editando portarias e decretos para desvirtuar o marco legal existente", diz Camila Asano, diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humanos.

Bolsonaro abriu assim a porteira para deportação sumária e fechamento seletivo de fronteira, tudo em desalinho às leis vigentes, diz.

Lula herdou uma fila de pedidos de refúgio, reflexo também de turbulências internacionais. Em 2010, no apagar do segundo mandato, 619 pessoas solicitaram refúgio no país. Em 2022, eram mais de 40 mil.

Coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União, João Chaves aponta o fim da "inércia perigosa" de antes. Enxerga, contudo, dois desafios para Lula: substituir o "viés emergencial" da Operação Acolhida, de amparo a venezuelanos, por "soluções duradouras" e aprimorar a emissão de vistos no exterior para quem corre risco, como haitianos e afegãos.

Despolitizar Forças Armadas é 'até utopia', dizem especialistas

Não será da noite para o dia que Lula vai resolver anos de desgaste com os militares, animosidade nutrida com esmero pelo bolsonarismo. Especialistas dizem que a despolitização das Forças Armadas é um projeto de longo prazo. "Até mesmo uma utopia", afirma a cientista política Ana Penido, pesquisadora do Grupo de Estudos em Segurança e Defesa Internacional na Unicamp.

Na primeira centena de dias de seu novo mandato, o petista viveu um morde-e-assopra com a categoria. Não foram poucas as medidas que esticaram a corda com os fardados, como a recente de pedir ao Congresso que retire um projeto de lei sobre isentar militares e policiais de punição se cometessem excessos durante operações de garantia da lei e da ordem (GLO). Uma promessa de campanha feita em 2018 por Jair Bolsonaro.

O governo não tinha nem um mês quando Lula demitiu o então comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, em meio a uma crise de confiança aberta após os ataques antidemocráticos em Brasília no 8 de janeiro. Trocou-o pelo general Tomás Paiva.

Quatro dias após a depredação, o presidente declarou que as Forças Armadas não são "poder moderador como pensam que são" e expôs a convicção de que policiais e militares deixaram os manifestantes golpistas invadirem o Palácio do Planalto.

"São instituições grandes, tradicionais e conservadoras", afirma Penido. "Lula investiu na desmilitarização do governo, o que já um grande desafio, dada a situação anterior."

Vem obtendo sucesso em algumas áreas, como a ambiental e a indígena, segundo a especialista na área militar. Em outras, como a política de inteligência ou de defesa, o trabalho apenas começa. "Ele tem nas mãos a oportunidade de convocar uma conferência nacional de defesa, a exemplo de outras políticas públicas. Diante da catástrofe político-militar do governo anterior, vai ser preciso paciência e ousadia. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura", diz ela.

Para Adriana Marques, professora da UFRJ especializada na área de defesa, é preciso levar em conta que "o governo começa de um patamar muito ruim", longe do que foram os dois primeiros mandatos de Lula. "Estamos saindo de uma situação de erosão democrática há uma década."

Bolsonaro aparelhou o Estado com militares de forma inédita desde a redemocratização, e despolitizar as Forças é um desafio de fato, segundo Marques. Ela prefere não falar em "pacificação", porque "a relação deve ser de subordinação ao regime democraticamente eleito, as Forças não têm que ter opinião sobre o regime".

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