Descrição de chapéu Junho, 13-23

Protagonistas de junho de 2013 perderam holofotes, mas abriram caminho para novatos

Característica contrasta com países como Chile e está ligada a aspectos do Movimento Passe Livre

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São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro

Dez anos após uma multidão heterogênea tomar as ruas e mudar a história do Brasil, nenhum dos protagonistas dos protestos de 2013 ocupa papel de destaque na política nacional.

Essa característica diferencia as chamadas Jornadas de Junho do que aconteceu depois de grandes manifestações em países como o Chile, cujo próprio presidente, Gabriel Boric, é fruto dos atos de 2011.

Isso está longe de significar que 2013 não teve influência nos rumos da política brasileira. Os protestos que completam uma década abriram espaço para movimentos à esquerda e à direita fundamentais para acontecimentos recentes da história do país.

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Marcelo Hotimsky, Lucas Monteiro, Nina Cappello e Mayara Vivian - Jorge Araujo e Andre Borges/Folhapress, Adriano Lima/Brazil Photo Press/Folhapress, Nelson Antoine/Fotoarena/Folhapress

Dos manifestantes mais conhecidos do MPL (Movimento Passe Livre), todos estão longe da política institucional —ainda que não tenham abandonado suas bandeiras.

É o caso de Nina Cappello. A então estudante de direito que chegou a ir ao programa Roda Viva (TV Cultura) falar em nome dos manifestantes é hoje defensora pública em Goiás, em setor especializado em família e sucessões.

Em 2022, seu nome estava entre o de outros defensores em um requerimento justamente em defesa do passe livre —desta vez, para facilitar a chegada dos eleitores às urnas.

Marcelo Hotimsky, integrante do MPL que participou de encontro com Dilma Rousseff (PT) à época dos protestos e afirmou que a Presidência era "despreparada" no tema do transporte público, formou-se em filosofia pela USP e passou a trabalhar em defesa dos povos indígenas.

Além dele, estavam na reunião com a então presidente Matheus Preis, Mayara Vivian e Rafael Siqueira.

Preis foi fazer mestrado em sociologia na Unicamp para pesquisar ação antiterrorismo no Brasil.

Mayara hoje é coordenadora na Casa do Povo, centro cultural no Bom Retiro, em São Paulo.

Siqueira era professor de música e não alimenta seus perfis públicos em redes sociais há alguns anos.

A ausência da arena institucional, no caso do MPL, foi calculada. Segundo Mayara, uma questão importante no movimento era não personalizá-lo, para evitar o risco de despolitização.

Outro militante conhecido à época, Lucas Monteiro, o Legume, diz que ele e seus colegas não entraram para a política por uma "questão de princípios e forma organizativa".

"A gente tinha uma clareza bem grande que a perspectiva de transformação que a gente defendia da sociedade não era uma transformação vinda de cima para baixo, dos meios institucionais ou do Parlamento", afirma ele, hoje professor de história no ensino fundamental de uma escola particular em São Paulo.

Um antecedente histórico reforçou a preocupação do movimento, avalia o professor Pablo Ortellado (USP).

Ele se refere à Revolta do Buzu, que ocorreu em 2003 em Salvador e inspirou movimentos como o do MPL em 2013. A revolta na capital baiana consistiu em manifestações sem liderança clara contra o aumento na tarifa de ônibus.

A reivindicação principal não foi atendida, e setores mais autonomistas, em particular, saíram frustrados com a intermediação de entidades estudantis nas negociações com o governo. Isso reforçou a preocupação de não deixar a pauta pelo passe livre ser capturada.

Condiz com esse pensamento a conduta do MPL de se retirar da organização dos protestos após a redução da tarifa.

Em 2013, porém, fugir de ser um rosto público era quase impossível para jovens que haviam deixado até políticos experimentados sem entender bem o que ocorria no país.

Para Legume, a volta à vida "normal" só foi possível porque o MPL de São Paulo organizou uma rede jurídica de proteção aos militantes.

"Foi isso que permitiu que a gente não fosse perseguido ou perdesse os empregos, por exemplo. Não foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, onde os militantes foram duramente perseguidos, tiveram uma exposição devastadora", diz.

Na capital fluminense, 23 ativistas foram condenados sob acusação de preparar atos violentos durante as manifestações de 2013 e 2014. Todos recorreram da decisão.

Entre eles, a mais conhecida, Elisa Quadros, conhecida como Sininho, manteve-se ativa na militância política junto a movimentos sociais, ao mesmo tempo que passou a trabalhar com marcenaria na região serrana do estado.

Professor de ciência política da UFMG, Ricardo Fabrino entrevistou dezenas de ativistas em suas pesquisas sobre 2013. E o que torna junho um marco singular, afirma, é justamente a característica de que muitos indivíduos ali se sentiam o centro da ebulição no país.

Aliado de primeira hora do MPL que chegou até a ser preso em um protesto, o então presidente do Sindicato dos Metroviários, Altino Prazeres (PSTU), cita que havia uma espécie de "panela de pressão" fermentada pela insatisfação popular.

Candidato do PSTU que não se elegeu a prefeito em 2016 e a governador em 2022, ele diz, que, na disputa entre diversos atores políticos, depois a direita bolsonarista apareceu e "iludiu a população descrente".

Se entre os militantes do Passe Livre nenhum migrou para a política, um antagonista do movimento, o então comandante-geral da PM, Benedito Roberto Meira, virou vereador pela União Brasil na cidade de Bauru, no interior de São Paulo.

Meira, porém, não vê sua eleição vinculada à atuação em junho, mas à sua passagem como capitão pelo município. Apesar das críticas recebidas pela PM pela truculência ao lidar com os protestos, ele diz considerar o balanço final positivo por ser um fenômeno novo que acabou sem mortes.

Carona para MBL, Vem Pra Rua e MTST

Embora não tenha impulsionado diretamente nenhum de seus protagonistas, junho de 2013 esteve na origem de diversos movimentos que, nos anos seguintes, marcaram a política do país —mesmo que alguns de seus integrantes nem sequer tenham ido aos atos.

Foi o caso do atual deputado federal Kim Kataguiri. Ele tinha 17 anos e estava prestes a concluir o ensino médio quando eclodiram os atos de 2013. Hoje, conta que não se interessava por política à época.

Ainda assim, credita aos atos a criação, no ano seguinte, do MBL (Movimento Brasil Livre), que teve papel importante no impeachment de Dilma.

Foi junho de 2013, diz, que "deu aquela percepção de que o cidadão comum poderia ir para a rua sem estar vinculado a um partido ou sindicato".

Atual porta-voz do Vem Pra Rua, a advogada Luciana Alberto diz que a relação entre as manifestações de junho e a criação do grupo é íntima. "Tanto é que o movimento adotou como nome um bordão dos atos." Membros que disputaram eleições não tiveram sucesso.

À esquerda, junho de 2013 foi crucial para o fortalecimento de organizações como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), onde o líder Guilherme Boulos se projetou até se filiar ao PSOL, em 2018.

A ascensão de Boulos como voz do campo progressista é creditada por aliados a portas que 2013 abriu, tanto pela emergência de pautas populares, como a questão habitacional, quanto pela necessidade de forjar líderes aptos a enfrentarem medidas de governos de direita eleitos nos últimos anos.

"Ele é produto direto daquele ciclo de lutas sociais", diz o presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros.

O MTST chegou a convocar para algumas das marchas de junho, ao lado do MPL, e realizou protestos em regiões periféricas com bandeiras voltadas aos serviços públicos.

Para o dirigente, que também é historiador e cientista político, inaugurou-se uma fase de protagonismo de líderes de novos movimentos sociais, com atuação nas frentes feminista, LGBTQIA+, indígena e antirracista.

A visão de Medeiros contrasta com a de parte do PT, que chega até a insinuar que os manifestantes foram pagos pela CIA, a agência de inteligência do governo norte-americano.

"Em parte porque estava no poder, a esquerda no Brasil deu as costas para junho, o oposto do que aconteceu no Chile com os protestos do país", diz Ortellado.

Criador da Mídia Ninja, que ganhou projeção com transmissões ao vivo dos atos, o jornalista Bruno Torturra deixou o grupo ainda em 2013 e diz que, a partir de 2014, viu desgostoso a transmissão ao vivo se tornar "um catalisador da radicalização" na direita.

O ápice do assombro ocorreu antes de Jair Bolsonaro (PL) ganhar a eleição de 2018, na mesma avenida Paulista onde esteve cinco anos antes.

"Quando começou a tocar o hino nacional com o Bolsonaro no telão, todas as pessoas estavam cantando e se filmando com o celular", lembra. "Pensei: ‘Que monstro que a gente ajudou a levantar das tumbas’."

A percepção logo se dissipou. "Mas eu não acho que a Mídia Ninja foi responsável por nada disso. A gente não tem culpa, porque foi um processo inevitável", diz.

Colaboraram Henrique Santana e Naief Haddad

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