Descrição de chapéu Junho, 13-23

Junho de 2013 consolidou celular como arma política, e direita leva a melhor até aqui

Jornadas serviram de test drive para o que socióloga chama de digitalização da política

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São Paulo

O gigante acordou, pegou o celular, e a política tal qual a conhecíamos nunca mais seria a mesma.

Os protestos de 2013 foram a pá de cal numa analógica organização das relações de poder. As chamadas Jornadas de Junho serviram de test drive para o que a socióloga Esther Solano chama de digitalização da política.

Foram pontos de partida e chegada bem distintos. Há uma década, imperava uma "visão romântica, como se a internet tivesse aberto o campo da democratização da comunicação". Chega a soar ingênuo hoje.

"O que a gente viu depois é que esse privilégio digital também provoca acontecimentos prejudiciais, como o mau uso da performance na política, vazia de conteúdo, que dá muito mais importância à hipérbole da teatralidade do que ao debate", diz Solano, que organizou em 2018 a coletânea "O Ódio como Política: A Reinvenção das Direitas no Brasil".

Manifestantes depredam painel da Copa do Mundo 2014 na avenida Paulista durante onda de protestos contra o aumento da tarifa de ônibus, em São Paulo
Manifestantes depredam painel da Copa do Mundo 2014 na avenida Paulista durante onda de protestos contra o aumento da tarifa de ônibus, em São Paulo - Mídia Ninja

Não restam dúvidas sobre quem saiu ganhando nessa. "Nos últimos anos, vimos que a política digital beneficia fundamentalmente políticos que se apresentaram como outsiders e souberam colonizar e catapultar essa dinâmica das redes." A extrema direita sobretudo, segundo a acadêmica.

Muita coisa não havia ficado clara em 2013 para o jornalista Bruno Torturra, pioneiro no uso de 4G para capturar aqueles tempos de reboliço social.

Ele idealizou o Mídia Ninja, rede que cobriu os protestos em tempo real, aparelhada com celulares e também um carrinho de supermercado equipado com laptops, bateria de carro, filmadoras e cabos de internet compridos o bastante para conectá-los a algum comércio próximo, lembra.

A rede social em alta era o Facebook, e o 4G, uma novidade que facilitou transmissões ao vivo por plataformas que nem existem mais. Antes mesmo da Ninja, Torturra registrara atos à esquerda com sua PósTV, como o Churrascão da Gente Diferenciada, que zombava de moradores horrorizados com a construção de uma estação de metrô num bairro nobre de São Paulo, e a Marcha da Maconha.

Chega junho de 2013, e Torturra acompanha um campo de batalha a princípio progressista se metamorfosear em outra coisa.

"Uma gente de direita muito estranha" rouba a cena, em suas palavras. Ele reportava quando um grupo, diante do prédio da Fiesp iluminado de verde e amarelo, cantou o Hino Nacional.

Uma das últimas cenas que transmitiu naquele dia: uma suástica pichada no chão da avenida Paulista.

Foi ficando claro, ao longo da década, que um lado se sobressaiu nessa história. Torturra observa certa autocomiseração da esquerda, que se sente comendo poeira na comunicação online.

"É uma espécie mais adaptada a esse ecossistema. Dentro do subsolo a minhoca vai melhor. Não dá pra falar que o Carlos Bolsonaro é um gênio da comunicação. Ele é um carrapato, ele vai prosperar."

Bruno Torturra, fundador da Mídia Ninja, que ganhou projeção nos protestos, muitos deles realizados na avenida Paulista., em São Paulo
Bruno Torturra, fundador da Mídia Ninja, rede que ganhou projeção nos protestos, muitos deles realizados na avenida Paulista., em São Paulo - Karime Xavier - 25.mai.23/Folhapress

O deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) vê um copo meio cheio quando analisa esse darwinismo digital.

A primazia de redes sociais e aplicativos de conversa sobre formas mais tradicionais de comunicação inseriu mais agentes na esfera pública, e isso é bom, diz o cofundador do MBL (Movimento Brasil Livre), dos dos principais grupos à direita que emergiram das ruas nos últimos anos.

"O debate ficou menos elitista. Antes era restrito a quem acompanhava a imprensa, e pobre não acompanhava, não assinava jornal. A partir de 2013 passou a ter mais acesso, a participar."

Kataguiri estava no ensino médio dez anos atrás, assistindo pela internet àquela turbulência toda nas cidades. No ano seguinte, ajudou a criar o MBL.

"A velha política que me desculpe, mas transparência é fundamental", dizia em 2016 a peça de campanha de Fernando Holiday, então integrante do movimento, que concorria a vereador em São Paulo. Cópia de propaganda produzida por manifestantes na Espanha.

No mesmo ano, Dilma Rousseff (PT) sofreu um impeachment, alvejada por parrudos protestos que tiveram na proa o MBL e figuras como a hoje deputada Carla Zambelli (PL-SP), bolsonarista de primeira hora.

Outro ponto de ruptura, segundo a antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Observatório da Extrema Direita, foi a popularização do WhatsApp no Brasil de 2014 em diante. Parcelas depois acomodadas sob o guarda-chuva do bolsonarismo foram ágeis em usar canais pré-existentes, dos religiosos aos lava-jatistas.

Se começam na esquerda, vide a digitalizada vitória de Barack Obama nos EUA, em 2008, as ferramentas tecnológicas são apropriadas pelo outro polo e passam a capilarizar a desinformação, segundo Kalil. Daí a enxurrada de fake news, não restrita à extrema direita, mas certamente dominada por ela.

Outra coisa que chama sua atenção: "Em 2013, vemos as primeiras manifestações de apoio à intervenção militar, sintomático de uma virada que vai acontecer."

"Saímos do Facebook", dizia um ruidoso bordão daquela leva de protestos, recorda Ronaldo Lemos, cientista-chefe do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

Os jocosamente apelidados "ativistas de sofá" agora ocupavam as ruas. Com líderes múltiplos e estrutura horizontalizada, aparentavam-se à Primavera Árabe e ao Occupy Wall Street, movimentos ainda otimistas com um futuro que, mal sabiam eles, lhes reservava um refluxo ditatorial no Oriente Médio e a ascensão de Donald Trump nos EUA.

O ideal da comunicação democratizada não tardou a se desmanchar no ar. "Redes priorizam conteúdos com grande impacto emocional e que mexem com o medo", diz Lemos.

"Não são mais pessoas que decidem o que olhar ou seguir. O algoritmo passou a decidir o que era distribuído ou não: mensagens curtas, palavras de ordem, desprivilegiou textos longos. E a gente sabe o que aconteceu."

A eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018 aconteceu, subsidiada em parte pela destreza digital de uma nova direita que nada tinha a ver com partidos tradicionais como o PSDB ou o DEM (hoje fundido à União Brasil).

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Deputados, na época ligados ao PSL de Jair Bolsonaro, fazem transmissões em redes sociais durante votação no Congresso - Pedro Ladeira - 22.mai.2019/Folhapress

Mais familiarizada com esse idioma das redes, ela reinou soberana por anos no meio e continua produzindo cenas simbólicas, como as lives transmitidas pelos próprios autores do quebra-quebra no 8 de janeiro.

A simbiose entre política e internet extrapolou alçadas ideológicas, e hoje o campo progressista corre contra o prejuízo.

Exemplo foi o post em que o leãozinho questiona "e aí, tudo joia?" na conta oficial da Receita Federal, prestes a iniciar as declarações do Imposto de Renda. A mesma pergunta vinha sendo feita nas redes para Bolsonaro, um chiste com o escândalo dos regalos sauditas para sua esposa.

"A esquerda está aprendendo", reconhece Kataguiri. "Está perdendo, mas antes nem perdia porque não participava da competição."

Mas o polo rival ainda prevalece, o que fica claro em levantamento da Bites Consultoria, especializada no universo digital. Em 2017, o então deputado Bolsonaro somava 6,7 milhões de seguidores nas redes. Hoje ex-presidente, tem mais de 62 milhões.

O escrutínio virtual é vasto. Os 513 deputados e 81 senadores da atual legislatura são seguidos, juntos, por 386 milhões de perfis —uma pessoa pode acompanhar várias contas, e ainda há quem mantenha mais de uma, vale lembrar.

Kataguiri ainda é um entusiasta dessa nova forma de fazer política, mas não ignora efeitos colaterais daninhos, como o viés de confirmação.

Trata-se da predisposição de todos nós em comprar um discurso que já está alinhado com convicções pessoais. "É uma tendência que o cérebro tem de potencializar nossas crenças, e o algoritmo sabe disso."

Para Torturra, da Mídia Ninja, 2013 está "muito mais para o fim de uma coisa do que para o começo de outra". Resgata uma frase que publicou após voltar de um ato em 2013 que, para ele, já cheirava mal: "O gigante acordou. E tá com um bafo forte".

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