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Utopia em 2013, passe livre atrai classe política com apelo eleitoral dez anos depois

País já têm 74 cidades com tarifa zero e pressão deve fazer discussão crescer em 2024

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São Paulo


Dez anos depois dos protestos contra o aumento da tarifa, a bandeira de passe livre no transporte público saiu do status de utópica e entrou no vocabulário de políticos de diversas matizes ideológicas.

O transporte público gratuito, realidade em só dez cidades antes de junho de 2013, chegou a 74. Na esteira da corrida eleitoral do ano que vem, capitais também estudam adotar a medida.

Quando os protestos eclodiram em 2013, mesmo setores da esquerda simpáticos à ideia consideravam a bandeira do MPL (Movimento Passe Livre) como algo de execução praticamente impossível em grandes cidades.

Ônibus na cidade de Caucaia (CE), a maior do país a adotar a tarifa zero
Ônibus na cidade de Caucaia (CE), a maior do país a adotar a tarifa zero - Divulgação

Autor do livro "A Razão dos Centavos" (Zahar), que trata dos protestos de junho e da questão da tarifa zero, o professor Roberto Andrés, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), diz que historicamente é raro que ciclos de protestos produzam efeitos institucionais imediatos. No entanto, eles geralmente causam mudança de mentalidade.

Para exemplificar, ele cita editoriais dos jornais na época, inclusive da Folha, que chamavam os manifestantes de irrealistas e tratavam o assunto como uma bandeira impossível.

"De lá para cá a pauta cresceu enormemente, você tinha 300 mil pessoas e hoje são 3,5 milhões pessoas atendidas pela tarifa zero. Isso sem haver uma incorporação institucional da pauta pelo governo federal, somente com o fato de essa ideia passar para o campo do possível", afirma.

A mudança tem se dado de baixo para cima, com prefeitos encampando a propostas em diferentes modelos, sem ajuda federal ou estadual, diz Andrés.

A proximidade das eleições do ano que vem é um dos fatores que ajuda a impulsionar a ideia. Na campanha paulistana, por exemplo, os dois principais candidatos, um de esquerda e um de direita, devem comprar a ideia.

O atual prefeito Ricardo Nunes (MDB) defendeu a discussão do assunto e citou dados positivos em cidades que adotaram a medida. A postura de Nunes coincide com o cenário em que, no penúltimo ano de gestão, ele ainda não conseguiu nenhuma marca e a cidade vive críticas pelo caos na região central.

Aliado do prefeito, o presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União Brasil), chegou a dizer em entrevista à revista Veja SP que "ou implementamos a tarifa zero ou o [Guilherme] Boulos ganha a eleição". O psolista Boulos também é um adepto da pauta.

A situação de São Paulo, porém, é mais complexa do que a maioria das grandes cidades brasileiras por envolver a necessidade de ajuste com o governo estadual, responsável pelo sistema de metrô e trens metropolitanos. Por se tratar de um sistema enorme, também haveria necessidade de novos investimentos para atender à demanda, que explodiria.

A pandemia intensificou um processo de fuga de passageiros nas cidades, gerando pressão por aumento de subsídios e da passagem. Em alguns municípios, as concessionárias de ônibus resolveram abandonar o serviço sob a justificativa de que a conta não fechava.

No caso de Caucaia (CE), a tarifa zero gerou o efeito inverso. Na cidade de 368 mil habitantes, a mais populosa a adotar a medida, o número de passageiros saltou de 510 mil por mês para 2,33 milhões –a frota seguiu o mesmo caminho, ao subir de 48 para 70.

O prefeito da cidade, Vitor Valim, diz que a ideia surgiu em 2021, durante a pandemia, como uma opção para fazer transferência de renda à população afetada pela crise –em algumas famílias, orçamento extra pode superar os 30%.

Valim diz que ainda houve melhora no trânsito, índices de acidentes e a população passou a desfrutar mais da cidade, que também passou a receber outros representantes de municípios com objetivo de replicar a medida.

Embora seja apto a reeleição, o prefeito diz que só trata do assunto no ano que vem e que não vê a tarifa como trunfo eleitoral. "Eu vejo a população a exigir do poder público a prestação desse tipo de serviço", afirma.

O prefeito afirma que a discussão sobre a tarifa zero vai se espalhar por outras cidades em 2024, quando acontecem as eleições municipais, uma vez que ela se mostrou viável. No Ceará, o exemplo de Caucaia deve ser implantado na região metropolitana, uma vez que a tarifa zero é promessa do governador Elmano de Freitas.

Em Caucaia, a cidade usa 3% do orçamento para este fim e diz não ter criado novas taxas para custear esse tipo de transporte, mas esse modelo não é o único.

Em Maricá (RJ), por exemplo, a isenção da passagem é bancada com recursos de royalties do petróleo.

Já em Vargem Grande Paulista, no interior de SP, a gestão do prefeito Josué Ramos (PL) criou um fundo de transporte com parte da verba que os empresários pagariam como vale transporte, além de multas, publicidade nos ônibus, zona azul e locação de lojas em terminais.

Ramos conta que a ideia surgiu, em 2017, quando passou a ser pressionado pela concessionária na cidade para aumentar a tarifa e, como não o fez, o contrato acabou rescindido.

"Do dia para a noite, eu tive que colocar vans para operar na cidade e eu não tinha como efetuar cobrança, e daí surgiu a ideia de colocar as vans gratuitas. Evidentemente que a população começou a entender que foi até melhor do que era antes e, com isso, surgiu essa ideia de criar a tarifa [zero]", diz ele, que é ex-cobrador de ônibus.

Posteriormente, ao fazer as contas, acabou verificando que sairia mais barato para a cidade embarcar na tarifa zero do que voltar ao modelo tradicional de concessão.

Em 2019, o serviço gratuito efetivamente começou e, desde então, os passageiros mensais passaram de 40 mil para 110 mil. Entre os benefícios para além do transporte, Ramos diz que já há empresas que pretendem mudar para a cidade devido ao valor menor que gastarão com o vale-transporte e que caiu o número de pessoas que faltam a consultas médicas.

Embora admita que o passe livre pautará as eleições, ele defende que o assunto seja tratado sem divisões ideológicas e não de maneira eleitoreira.

"A minha visão é que esse sistema pode ser implantado em qualquer lugar", diz, acrescentando que é preciso que a conta seja dividida entre os três entes da Federação.

Embora a aposta mais ruidosa no governo Lula (PT) até agora seja incentivar carros mais baratos, há algumas iniciativas na esfera federal que colocam a tarifa zero no horizonte.

Uma delas é o projeto de lei do deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP), que era secretário de Transportes de São Paulo em junho de 2013. Assim como o caso de Vargem Grande, ele prevê a criação de um fundo usando o vale-transporte, uma obrigação das empresas.

O outro é uma PEC (proposta de emenda à Constituição), de Luiza Erundina (PSOL), que cria um sistema único de mobilidade, em modelo similar ao SUS (Sistema Único de Saúde), e está em fase de coleta de assinaturas (são necessárias 171 para apreciação).

A proposta foi formulada em conjunto com entidades como a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), o Movimento Passe Livre (MPL) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec, diz que também há atualmente a tentativa de encontrar um um plano mais imediato para ajudar financeiramente os municípios.

"O governo está trabalhando em duas frentes: numa nova legislação, vai criar novas formas para ajudar os municípios a baratear a tarifa e, por outro lado, um programa mais imediato que forneça frota nova aos municípios para conseguir também baratear o sistema local e ajudar na busca da tarifa zero", diz.

Segundo levantamento da Coalização Mobilidade Triplo Zero, um conjunto de entidades relacionadas a área de transportes da qual o Idec faz parte, o estado de São Paulo lidera o ranking com 21 cidades com passe livre, seguido por Minas Gerais (18) e Paraná (10). Entre elas, Caucaia, Ibirité, Maricá, Paranaguá, Balneário Camboriú, Formosa e Assis têm mais de 100 mil habitantes.

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