Juiz de Fora oculta memórias e homenagem do Exército à 'capital do golpe' e prepara 'marcha reversa'

Batalhão de onde partiram as tropas em 31 de março de 1964 em direção ao Rio de Janeiro mantém reverência à data; cidade prepara homenagens a Jango 60 anos depois

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Juiz de Fora (MG)

Ponto de partida das tropas que anteciparam o golpe de 1964, Juiz de Fora (MG) mantém ocultos os sinais de sua participação na instauração da ditadura militar que durou 21 anos no país.

As lembranças da então autoproclamada "capital da revolução", porém, existem. De forma menos escondida, como na placa dentro da antiga sede da 4ª Região Militar em homenagem ao 31 de março, local e data da mobilização das tropas do general Olympio Mourão Filho que deram início ao golpe. Ou mais restrita, como no acervo do oficial guardado na reserva técnica do Museu Mariano Procópio.

Letreiro com homenagem ao 31 de março, dia do início do golpe militar de 1964, na antiga sede da 4ª Região Militar, de onde partiram há 60 anos as tropas comandadas pelo general Olympio Mourão Filho para depor o presidente João Goulart - Eduardo Anizelli/Folhapress

Sessenta anos depois da mobilização militar na cidade que antecipou os planos de deposição do presidente João Goulart, o Jango, a prefeitura local pretende promover o que chama de "virada de página". O município organiza um evento intitulado Marcha Reversa, na qual movimentos sociais partirão do Rio de Janeiro em direção a Juiz de Fora, sentido contrário do realizado pelas tropas de Mourão Filho.

"Parte da cidade e do Brasil não conhece a história do que aconteceu em Juiz de Fora nos primeiros momentos do golpe. Queremos fazer uma grande festa. Não para comemorar o golpe, mas para comemorar a vida e a luta de pessoas que sofreram, foram presas, mortas, tiveram suas famílias desestruturadas em função do golpe", disse o secretário municipal de Direitos Humanos, Biel Rocha.

Na madrugada de 31 de março, Mourão Filho, então chefe da 4ª Região Militar sediada em Juiz de Fora, mobilizou suas tropas em direção ao Rio de Janeiro para depor Jango. A decisão foi tomada após o discurso do presidente a sargentos pró-governo em defesa das reformas de base, vista pela oposição como uma "ameaça comunista" ao país.

O movimento de Mourão Filho antecipou os planos golpistas de militares, políticos e empresários, que há meses tramavam a queda do presidente.

Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora, porém, indica que a mobilização não foi apenas um rompante do general. Prisões de apoiadores do governo ocorreram na véspera da saída das tropas, bem como postos de gasolina foram orientados a reservar combustível para veículos militares.

O jornalista Wilson Cid, que trabalhava em Juiz de Fora, afirmou que o então comandante da 4ª Região Militar não escondia sua participação no golpe em curso.

"O general Mourão Filho fez muita questão de que o pessoal da imprensa ouvisse os telefonemas dele. Não porque era bonzinho, mas porque estava interessado que o país inteiro soubesse das pretensões dele", disse Cid, que trabalhou no comitê de imprensa montado no quartel comandado por Mourão Filho.

O golpe só teve sucesso graças à adesão das Forças Armadas e dos políticos. Mas a participação de Mourão Filho no levante fez com que o oficial retornasse sob festa a Juiz de Fora uma semana depois. Ele desfilou em veículos militares acenando para os moradores com seu cachimbo à boca (marca de sua imagem pública) ao lado do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto.

O general Olympio Mourão Filho (de farda militar, à esq.) e o então governandor de Minas Gerais Magalhães Pinto (de terno, gravata e óculos) acenam para o povo em Juiz de Fora depois da deposição do presidente João Goulart - Arquivo / Agência O Globo

Renê Matos, ex-reitor da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), foi um dos que recepcionaram o general. À época, aos 19, ele servia no NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva) da cidade. Apesar de envolvido no meio militar, ele afirma que no quartel não se falava sobre os planos de golpe. Diz que, quando as tropas retornaram, participou dos festejos da cidade por interesses pessoais.

"Foi uma festa, uma convocação para toda a cidade. O povo foi para a rua receber os heróis como se estivessem voltando da guerra. As tropas desfilaram com canhões, tanques de guerra e soldados marchando. Muito jovem, também fui, mas mais para ver as moças, não para ver soldado", contou ele.

Dois anos depois, Matos iniciou o curso de Farmácia na UFJF e, em 1968, presidiu o DCE (Diretório Central do Estudantes) da universidade e militou na Juventude Universitária Católica. Em 1972, foi preso por 20 dias sob acusação de integrar os movimentos de combate à ditadura.

"A pressão em mim era maior porque tinha sido militar", diz ele, que afirmou não ter sofrido torturas.

Logo após o golpe, a imprensa e apoiadores da cidade tentaram alçar Juiz de Fora à imagem de "capital da revolução". Mourão Filho, por essa narrativa, seria o herói local.

Uma das incentivadoras da exaltação local ao golpe era Geralda Armond, então diretora do Museu Mariano Procópio. Conhecido por seu acervo ligado à família imperial, o espaço buscou naquele período ampliar o escopo e se tornar referência no enaltecimento da memória da cidade.

Dois anos após o golpe, Armond criou a "sala 31 de março", em homenagem ao golpe. A inauguração ocorreu com a presença de autoridades para assistir à entrega do acervo de Mourão Filho, que incluía sua espada, farda e até o charuto que marcou sua passagem por Juiz de Fora.

Em seu discurso durante o evento, o general já mostrava o seu distanciamento com a cúpula do regime. Na fala, pedia a realização de eleições diretas, expondo o desapontamento de parte dos apoiadores do golpe. Meses depois, o próprio general se colocou à disposição para uma candidatura, apoiado pela elite da cidade.

Para a presidente da Comissão Municipal da Verdade, a historiadora Helena da Motta Salles, o general nunca teve o status de herói que parte dos apoiadores do golpe tentou lhe atribuir.

"Foi criada a ideia de que aqui foi a 'capital revolucionária'. Eles quiseram colocar a cidade nesse papel. Mas isso era uma farsa que enganou muita gente e foi desmistificado ao longo do tempo. O Mourão também foi colocado como herói do ponto de vista da retórica oficial. Mas ele não era uma pessoa reverenciada ou aplaudida pela população."

A cidade não tem nenhuma rua em homenagem ao general, que dá nome a logradouros de 15 cidades pelo país, segundo os Correios. A praça 31 de Março, inaugurada pelo oficial, teve o nome alterado.

Desde a década de 1980, a sala em referência à data no Mariano Procópio não existe mais. O acervo do general atualmente está na reserva técnica. Reaberto no final de 2022, o museu exibe ao público apenas o cachimbo do general na exposição em que conta a formação de seu acervo.

"Ele está ali para mostrar as relações sociais e políticas da antiga diretora. Evitamos colocar armas e fardas por conta do momento político delicado que vivemos. É preciso um olhar cuidadoso para esse tipo de acervo", disse a historiadora do museu Rosane Ferraz.

Vizinha ao Mariano Procópio, a antiga sede da 4ª Região Militar agora abriga a 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha. A unidade se autodenomina "Brigada 31 de Março". Segundo seu site, o nome se deve ao seu "papel decisivo e corajoso na eclosão da revolução democrática", termo ainda utilizado por alguns militares para se referir ao golpe. O Exército não autorizou a visita da Folha ao local, que expõe um letreiro com a autodenominação.

O quartel foi o ponto de concentração na cidade dos acampamentos bolsonaristas após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o presidente Lula (PT) na últimas eleições.

A prefeita Margarida Salomão (PT) decidiu promover neste ano uma série de eventos para lembrar o início do golpe de 1964 e os 21 anos de ditadura militar. Além da "marcha reversa", haverá homenagens a Jango, com a presença da viúva Maria Tereza Goulart.

"As pessoas sabem que [o golpe] partiu daqui, mas é uma cidade onde tem muitos silêncios sobre a presença da ditadura. É como se as tropas tivessem partido daqui e a ditadura tivesse ido para o Rio. Há pouco conhecimento sobre o que aconteceu aqui nesse período. É como se a ditadura tivesse saído com o Mourão", disse o historiador Fernando Perlatto, da UFJF.

De acordo com a Comissão Municipal da Verdade, Juiz de Fora teve, ao longo da ditadura, 151 pessoas com alguma violação de direito, das quais 63 fizeram alguma menção a tortura ou maus tratos —entre elas, a ex-presidente Dilma Rousseff.

Em 2018, a cidade voltou a ser palco de outro evento que deixou marcas na história nacional: a facada em Bolsonaro.

Série aborda os 60 anos do golpe de 1964

  • Golpe de 1964, 60 anos

    Folha estreia série de reportagens revisitando o golpe de 1964, suas dimensões políticas e as relações desse episódio com os dias de hoje. A ruptura foi consumada com a deposição do então presidente João Goulart (PTB) e deu início a um período de 21 anos de ditadura militar, marcado por tortura e morte de opositores, pela supressão de liberdades políticas e pela censura à imprensa. Debates sobre os acontecimentos de 60 anos atrás ainda estão presentes no meio político, especialmente após o governo de Jair Bolsonaro (PL), quando o poder civil se reaproximou da caserna.

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