'Lula é assim, na cabeça dele é gesto de boa vontade', diz ex-ministro sobre veto a atos contra 1964

Nilmário Miranda, titular dos Direitos Humanos no 1º governo Lula e atual assessor da pasta, defende presidente e diz que sua agenda de atos contra a ditadura 'está toda mantida'

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São Paulo

Nilmário Miranda está como a ostra entre o rochedo e o mar.

Ex-militante contra a ditadura, foi preso e torturado. Em seu primeiro mandato, Lula (PT) o nomeou ministro de Direitos Humanos, cargo que ocupou de 2003 a 2005. Hoje ele é chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia e História e da Verdade da pasta que já comandou, agora liderada por Silvio Almeida.

Militantes de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos têm criticado fortemente o governo (sobretudo Lula) pela atuação no setor. Tanto pela demora em recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos quanto pelas recentes declarações de Lula de que a ditadura "faz parte da história" –condenadas num manifesto de 150 entidades– ou ainda pela ordem do presidente para que órgãos do governo não lembrem os 60 anos do golpe, em 31 de março –o que forçou o Ministério dos Direitos Humanos a cancelar um ato já programado.

Retrato do ex-ministro dos Direitos Humanso Nilmário Miranda falando ao microfone
O ex-ministro de Direitos Humanos e ex-deputado federal pelo PT-MG Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia e História e da Verdade do Ministério dos Direitos Humanos do terceiro governo Lula - Divulgação

Ex-deputado federal pelo PT de Minas Gerais, Nilmário tem ouvido com atenção as críticas e diz respeitá-las. Mas procura compreender as motivações de Lula –pondera que militares estão sendo investigados e houve desmilitarização do governo– e enumera ações do ministério.

Entre os projetos, está a transformação da Casa da Morte, centro de tortura durante a ditadura, em Petrópolis (RJ), num memorial –iniciativa que chegou a ser anunciada em 2012, mas nunca saiu do papel.

Autor, com Carlos Tibúrcio, do livro "Dos Filhos deste Solo", importante inventário sobre mortos e desaparecidos da ditadura, Nilmário está finalizando uma edição resumida da obra, que ganha um terceiro autor, o poeta e também ex-preso político Hamilton Pereira, o Pedro Tierra, com quem trabalha no Ministério dos Direitos Humanos.

Como explicar a determinação do presidente Lula para que órgãos do governo não façam atos para lembrar os 60 anos do golpe, e como o senhor a recebeu?

O presidente decidiu, nós vamos seguir. Mas 95% dos atos são de entidades e outros entes federativos, como a prefeitura de Belém, eu vou lá, aquela marcha [entre Rio e Juiz de Fora] eu vou participar, estou indo [em um evento] na ABI [Associação Brasileira de Imprensa]. Então a minha agenda está toda mantida.

O governo não pode impedir atos, e acho que nunca passou pela cabeça do presidente isso. Apenas ficou uma história mal interpretada, digamos assim.

Houve um acerto dele com o Múcio e os comandantes militares?

Eu não faço críticas ao presidente. Ele é o técnico, ele escala o time, define a tática. É assim que funciona. Ele fala que está sendo feita uma coisa sem precedentes. O pessoal do 8 de janeiro está sendo processado, investigado, punido. Inclusive gente da alta oficialidade da Polícia Militar e das Forças Armadas. Já está sendo feito o principal para garantir a democracia.

Na cabeça dele, é um gesto de boa vontade. O Lula é assim. Se ele quisesse barrar essa pauta, não teria chamado o Silvio [Almeida para ser ministro], nem eu estaria aqui. Eu fui ministro [de 2003 a 2005] por causa dessa pauta. O Paulo Vannuchi me sucedeu, a pauta era a mesma, revisão dos crimes da ditadura etc. Ele sempre fez o que tinha que fazer. Não acho que vai mudar isso também não. Como disse o ministro, nós temos políticas de Estado sobre mortos e desaparecidos.

Mas por que a Comissão de Mortos e Desaparecidos ainda não foi reinstalada e a Comissão de Anistia não funciona como outrora?

A Comissão de Anistia já fez mais de 80 julgamentos no ano que passou e vai aumentar enormemente neste ano, e nosso projeto é até 2026 julgar todos os casos. Anistia não é coisa para durar a vida inteira. Há no governo uma simpatia com essa ideia de a gente acelerar. Como também teve seis anos de interrupção aí, com o período Temer e o período Bolsonaro –que não só não julgou como ajudou a desmontar a comissão–, nós vamos acelerar.

E a Comissão de Mortos e Desaparecidos, como se explica que depois de mais de um ano não tenha sido reinstalada ainda?

Tem duas respostas para isso. Primeiro, quem decide é o presidente, ele que é o senhor da oportunidade, o senhor do tempo. Segundo, ele deu declarações mostrando que está desmilitarizando o governo, trocou militares da Abin [Agência Brasileira de Inteligência], tirou de ministérios militares fora da função.

Nós estamos fazendo o que deve ser feito. Claro que defendemos a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas o presidente é quem assina.

Qual é o balanço do trabalho da assessoria especial que o sr. chefia, o que foi feito e o que planejam?

No caso da Anistia, estamos organizando a comissão de cima a baixo e temos o projeto para julgar mais de 3.000 casos. A proposta que discuti com o Conselho, com a presidente e depois com o ministro é encerrar os trabalhos em 2026, julgar todos os casos, não deixar nenhum. Estamos progressivamente reforçando a comissão.

Já chegou a ter no passado, quando eu fui da comissão, cem técnicos trabalhando só na análise de processos, hoje tem 12, 15. Agora vai ter concurso, nós estamos reforçando, usamos bastante estagiários, pessoas cedidas por outros órgãos, e para terminar tem que ter um incremento estrutural e financeiro.

Anistia não é para a vida inteira, e quanto mais distante do motivo que levou a pessoa a requerer a anistia, menos a sociedade participa. Na de Mortos e Desaparecidos eu nunca parei um dia de trabalhar, independente de estar ou não instalada. Estamos trabalhando para recuperar os lugares de memória no país inteiro.

Como está a situação da Casa da Morte e da Usina Cambahyba?

Tem uns 30 anos em que se fala em transformar a Casa da Morte em memorial. Lá em Petrópolis desde 2008 tem movimentos concretos para desapropriar a casa nesse sentido. Agora, a prefeitura protocolou uma ação de desapropriação, e fizemos um convênio com a prefeitura, ou seja, financiamos a desapropriação –que não chega a R$ 2 milhões.

Uma vez tendo a emissão da posse, a prefeitura fará um convênio com a Universidade Federal Fluminense, que vai assumir e montar o memorial.

Manifestantes em frente à Casa da Morte, local de tortura e execução de presos políticos durante a ditadura, em Petrópolis (RJ), em foto de 2012 - Juliana Dal Piva - 7.dez.2012/Folhapress

Na Usina Cambahyba [onde corpos de presos políticos foram incinerados], tem um assentamento de reforma agrária, o MST sabe daquele forno e sempre lutou para que fosse recuperada aquela história. O assentamento do MST virou definitivo, mas na área de fazenda. Na área construída –uma parte virou ruína, mas ainda tem aquelas chaminés enormes–, nosso objetivo é fazer um memorial também, pedir que a Prefeitura de Campos dos Goytacazes faça um decreto de desapropriação, a gente levanta recursos para financiar. Já há um projeto de lei bem avançado na Assembleia do RJ para patrimonializar.

Outra coisa que nós estamos discutindo é o caso do Dops do Rio. O prédio é da Polícia Civil, que quer fazer um museu, e nós achamos que tem que ser um memorial da democracia, como aconteceu em São Paulo.

Durante o século passado, lá tinha a Polícia Central –em 1912, a Polícia Central prendia sambistas por vadiagem. Na década de 1930, quando virou a polícia política, por lá passaram Graciliano Ramos, Nise da Silveira, Jorge Amado, Mário Lago, Prestes, Olga Benário, Carlos Lacerda. Quando a capital se mudou para Brasília, em 1962, passou a se chamar Dops.

Série aborda os 60 anos do golpe de 1964

  • Golpe de 1964, 60 anos

    Folha estreia série de reportagens revisitando o golpe de 1964, suas dimensões políticas e as relações desse episódio com os dias de hoje. A ruptura foi consumada com a deposição do então presidente João Goulart (PTB) e deu início a um período de 21 anos de ditadura militar, marcado por tortura e morte de opositores, pela supressão de liberdades políticas e pela censura à imprensa. Debates sobre os acontecimentos de 60 anos atrás ainda estão presentes no meio político, especialmente após o governo de Jair Bolsonaro (PL), quando o poder civil se reaproximou da caserna.

O sr. está falando das ações e da importância da preservação da memória, a cargo do setor sob tua chefia no ministério, e da importância de lembrar para não esquecer. Como é que o sr., que é próximo do presidente e sempre militou na área dos direitos humanos, recebeu essa frase do presidente?

Eu falo o seguinte: o que foi feito por ele? Eu era da comissão de Mortos e Desaparecidos, representante da Câmara. E fiz um livro com Carlos Tibúrcio chamado "Dos Filhos deste Solo", que conta a história de cada um dos 434 mortos e desaparecidos. O Lula me chamou para ser ministro de Direitos Humanos. E convidou o Carlos Tibúrcio para escrever os discursos dele por oito anos. Depois que eu saí de lá, ele chamou Paulo Vanucchi, qual que era a pauta? Mortos e Desaparecidos.

Ele nunca deixou de fazer as coisas. Eu compreendo perfeitamente o que o Lula está vivendo. Ele está entre duas situações. Quase houve um golpe no país, uma tentativa real de golpe. Então ele quer pacificar toda a relação com Exército, Marinha e Aeronáutica.

Já mexeu na Polícia Federal e na Polícia Rodoviária Federal para poder tirar extremistas de lá. A gente sabe que ele fez uma mudança profunda na Abin, tirou centenas de militares. Depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, tá havendo indiciamento, denúncias, prisões, o que nunca houve no Brasil, é inédito.

Os que seriam os maiores atentados da história do Brasil ficaram impunes. Não se consumaram. O do caso do Gasômetro no Rio, o João Paulo Burnier ele só não cometeu o atentado, em que morreriam centenas de pessoas porque o Sérgio Macaco denunciou. E ele foi punido –o único punido foi o que denunciou.

No Caso Riocentro estava o mesmo pessoal da Casa da Morte. O capitão Machado, que estava ao lado de Sérgio Rosário, não só jamais foi interrogado, mas foi transferido para Brasília e virou instrutor de cadetes. Agora imagina, um cara que ia fazer um atentado daquele virou instrutor de cadetes. Todos eram protegidos.


RAIO X | NILMÁRIO MIRANDA, 76

Nasceu em 1947 em Belo Horizonte e foi criado em Teófilo Otoni. É jornalista pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com mestrado em Ciências Sociais. Na ditadura, integrou movimentos de base ligados à lgreja Católica e foi preso e torturado. Deputado federal pelo PT mineiro por cinco mandatos, foi ministro dos Direitos Humanos no primeiro governo Lula. É o atual chefe da assessoria especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade da pasta.

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