Descrição de chapéu forças armadas

Posição de chefe da Marinha sobre João Cândido ignora desigualdade racial no país

Apesar de crítica de Marcos Sampaio Olsen, especialistas dizem que episódio foi relevante para história e traz reflexão sobre racismo

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São Paulo

A posição do chefe da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, contrária à homenagem a João Cândido, líder da Revolta da Chibata (1910), ignora a desigualdade racial ainda persistente na sociedade brasileira, afirmam especialistas.

Apesar de tocar em um tema caro para a Marinha —a hierarquia—, o episódio foi importante para a história nacional e traz reflexão necessária para a sociedade brasileira sobre o racismo.

O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara dos Deputados, em Brasília
O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara dos Deputados, em Brasília - Pedro Ladeira - 17.mai.23/Folhapress

João Cândido foi líder da Revolta da Chibata, motim ocorrido no Rio de Janeiro em 1910 conhecido, sobretudo, pelo combate a castigos físicos feitos contra os marinheiros. Com o passar dos anos, Cândido e a revolta se tornaram símbolos nacionais contra o racismo.

Na segunda-feira (22), Olsen condenou, em carta enviada à Câmara dos Deputados, o projeto de lei que visa incluir o personagem histórico em livro de heróis e heroínas da pátria. Ele falou em "reprovável exemplo" e disse que os participantes da insurgência eram "abjetos marinheiros".

O PL é de autoria do parlamentar Lindbergh Farias (PT-RJ) e relatado por Benedita da Silva (PT-RJ).

Para Álvaro Pereira do Nascimento, professor titular de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor de uma biografia sobre João Cândido, a inclusão do líder histórico no Livro de Heróis da Pátria é importante para o país, ainda marcado pelo racismo.

"Na historiografia, a ideia de um herói ou heroína é controversa. Entretanto, não ter essas pessoas [negras, mulheres] nesses livros é reservá-los somente a homens brancos", diz.

Ele afirma que a revolta teve um caráter propositivo e foi além da mera reação aos castigos físicos. Propunha, por exemplo, a retirada de oficiais violentos, a revogação do código disciplinar que permitia o castigo corporal e medidas de educação para os marinheiros de comportamento reprovável.

Segundo Nascimento, embora tenha impactado aspectos caros para a Marinha, como a hierarquia e a disciplina, o evento também precisa ser visto a partir do aspecto racial, uma vez que a maioria dos oficiais era branco, enquanto os marinheiros eram majoritariamente pretos e pardos.

O marinheiro João Cândido Felisberto, reconhecido como líder da Revolta da Chibata, que pedia o fim dos castigos físicos na Marinha em 1910
O marinheiro João Cândido Felisberto, reconhecido como líder da Revolta da Chibata, que pedia o fim dos castigos físicos na Marinha em 1910 - Creative Commons

"Fazia 22 anos de libertação da escravidão e oficiais reprimiam marinheiros com castigos corporais. Neste contexto, Cândido foi alçado ao cargo de almirante, chamado popularmente de almirante negro."

A "promoção" a almirante se deu em razão do apoio popular, mas o líder nunca chegou a ser de fato promovido ao posto.

Segundo Andersen Figueiredo, mestre em História da África pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), a resistência em considerar Cândido um herói da Pátria revela o racismo ainda persistente na sociedade brasileira.

"Ele já deveria ter sido incluído no livro. Cândido foi um dos ícones da luta contra o racismo da época", afirma. O especialista lembra que, no início do século 20, os negros continuavam, em alguns contextos, sofrendo castigos similares ao que ocorria no tempo da escravidão.

"João Cândido teve a coragem de denunciar os castigos que os marinheiros sofreram. Falou sobre não poderem suportar a escravidão persistente na própria Marinha brasileira", diz Figueiredo.

Para Francisco Phelipe Cunha Paz, historiador e doutorando em história pela Unicamp, o reconhecimento de João Cândido entre os heróis nacionais é esforço necessário para contar a história de uma parte do Brasil "violada e violentada" desde o início da colonização.

"João no panteão da Pátria é ao mesmo tempo uma lembrança-denúncia do racismo como base de sustentação da história desse país. É também uma forma de combate e reparação ao racismo", afirma.

Segundo Ynaê Lopes dos Santos, professora do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), um conjunto de razões justifica a inclusão de João Cândido no Livro de Heróis da Pátria, como o fato de ele ser um homem negro em um contexto no qual a ideia de herói construída na história do Brasil faz referência a apenas homens brancos.

Além disso, a entrada dele no livro ajudaria a jogar luz sobre a maneira como a história militar vem sendo contada. "É uma maneira ordenada pelo racismo. Então, os sujeitos protagonistas geralmente são brancos, o que silencia não só a participação desse sujeito de baixa patente, mas também das próprias tensões existentes dentro da experiência militar", afirma.

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