Foco em crianças estupradas e rapidez explicam sucesso da esquerda contra PL Antiaborto por Estupro

Opositores da lei dominaram mobilização online, normalmente seara da direita, com mudança de mensagem e apelo a fãs de divas pop

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São Paulo

A grande mobilização para brecar o PL Antiaborto por Estupro mostrou uma esquerda tão eficiente quanto a direita na comunicação online, seara que costuma ser dominada pelos bolsonaristas.

A mudança na mensagem em defesa do direito ao aborto, que abandonou a ênfase em saúde pública e liberdade da mulher e focou na proteção das meninas estupradas, foi um dos principais componentes da nova abordagem.

A reação rápida à votação da urgência do projeto de lei e as estratégias para ir além da bolha feminista deram gás à mobilização.

Após a pressão popular, na terça-feira (18), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), recuou e anunciou que vai criar uma "comissão representativa" para analisar o mérito do projeto de lei 1.904, o que, na prática, desacelera a tramitação.

Pedro Ladeira/Folhapress
Mulheres protestam contra o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e contra o PL Antiaborto por Estupro - Pedro Ladeira/Folhapress

O projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara o aborto após 22 semanas de gestação a homicídio simples, mesmo nos casos em que o procedimento está previsto na Constituição – estupro, anencefalia do feto ou risco à vida da mãe.

Para Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas da USP, a mobilização contra o projeto "mostrou que a esquerda também consegue construir uma campanha efetiva quando encontra a forma correta de mandar sua mensagem".

"Uma parte expressiva dos conservadores, geralmente contrários à legalização do aborto, considera absurdo obrigar uma mãe a parir o filho do estuprador", diz.

A mudança de estratégia dos defensores do direito ao aborto começou a ser traçada no final de 2022, quando a Câmara ameaçou aprovar o Estatuto do Nascituro, projeto que proíbe o aborto em qualquer caso.

De forma gradual, o discurso deixou de enquadrar o direito ao aborto como uma questão de ciência e de saúde pública e passou a focar na proteção a crianças e jovens vítimas de estupro.

"A direita e os opositores do aborto monopolizavam esse discurso de defesa das meninas estupradas", diz Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e fundadora da organização Anis (Instituto de Bioética).

Ela cita a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que viralizou com seu vídeo em que afirmava, sem provas, que crianças na Ilha de Marajó (PA) eram vítimas de tráfico e tinham os dentes "arrancados para não morderem na hora do sexo oral".

Os movimentos pró direitos reprodutivos passaram a enfatizar a gravidez infantil e o bem-estar das menores vítimas de estupro que seriam obrigadas a ter os filhos de seus estupradores pela dificuldade de acesso ao aborto legal.

A mudança foi adotada em pronunciamentos e postagens por influenciadoras, ativistas e autoridades como a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, e a primeira-dama Janja da Silva.

"Trata-se de uma questão de compaixão, de proteção a crianças e às mulheres adultas que podem morrer se levarem a cabo uma gestação que ameaça suas vidas", diz Diniz.

Isso se intensificou no início de abril com a aprovação da resolução do Conselho Federal de Medicina que proibia a assistolia fetal, procedimento que consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar que ele seja retirado do útero com sinais vitais. Ela é recomendada pela Organização Mundial de Saúde para aborto legal em gestações acima de 20 semanas.

Em maio, em resposta a uma ação proposta pelo PSOL e pela Anis, fundada por Débora Diniz, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a resolução do CFM e ações ligadas a ela. Foi o estopim para a apresentação do PL Antiaborto por Estupro.

Quando ficaram sabendo que seria votado um requerimento de urgência do projeto, que acelera sua tramitação, a organização CFemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), que monitora as leis, convocou uma reunião de emergência em 4 de junho com diversos movimentos, entre eles a Frente Nacional Pela Legalização do Aborto. Juntos, traçaram um plano de ação rápida.

No mesmo dia, Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, começou a disseminar postagens nas redes sociais e projeções com a hashtag #CriançaNãoÉMãe.

Os movimentos ressuscitaram a plataforma Criança Não é Mãe para enviar emails pressionando Lira. Ela havia sido criada em dezembro de 2022, para o Estatuto do Nascituro, e foi adaptada para o PL 1904 —com quase 350 mil emails enviados ao presidente da Câmara.

"Foi mais ágil, não precisamos montar do zero, fazer nova identidade visual", diz Maira Baracho, gestora da Nossas, que administra plataformas de pressão popular de envios de email. Foi a terceira maior campanha da Nossas —as duas primeiras foram durante a pandemia da Covid-19, para acesso a vacinas e criação do auxílio emergencial.

Em 5 de junho, o projeto entrou na pauta de votação, mas acabou saindo. Em 12 de junho, voltou e foi aprovado o regime de urgência.

Foi aí que a mobilização da esquerda explodiu, segundo mostram os colunistas da Folha Felipe Bailez e Luis Fakhouri, que fazem mapeamento de redes.

"A partir deste dia, começa uma forte resposta contrária ao projeto, chegando a ser três vezes maior em volume que as mensagens defendendo o projeto. As palavras mais associadas são "estupro", "criança", "mulher" e "pena", que indicam uma mudança de narrativa nas redes."

Uma das iniciativas que ajudou a ampliar o alcance da mobilização veio do gabinete da deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que entrou em contato por grupos de WhatsApp e mensagens no X e Instagram com os fãs clubes de divas pop como Beyoncé, Taylor Swift, Rihanna, Billie Eilish, que têm centenas de milhares de seguidores. A própria deputada Erika Hilton instou os fãs clubes a defenderem o direito ao aborto como suas "divas".

Em 13 de junho, manifestações contra o PL foram realizadas em diversas cidades.

Segundo Maira, da Nossas, a mobilização conseguiu pregar não apenas para convertidos —mais de um terço das pessoas que enviaram emails para Lira nunca tinham participado de campanhas da entidade.

Ortellado credita o sucesso da pressão sobre os legisladores muito mais à calibragem da mensagem do que às ferramentas de mídias sociais.

"Muitas vezes considera-se que a comunicação mais efetiva da direita se deve a um domínio maior dos instrumentos digitais e não a uma mensagem com mais apelo junto ao público", diz.

Para ele, a campanha progressista "acertou o tom" ao mostrar que o PL obrigaria mulheres a "parir um filho do estuprador, que a pena pelo aborto era maior do que a pena do estuprador e que o limite de 22 semanas atingiria sobretudo crianças e adolescentes estupradas que demoram a entender que estão grávidas".

"O sucesso da campanha não estava no domínio técnico das mídias digitais, mas no desenho adequado da mensagem", avalia.

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