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Foragidos do 8/1 na Argentina fazem provocação desafiadora ao sistema de refúgio

Direito a asilo é garantido, mas não pode ser pervertido

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha, viveu no sul do Chile e cobriu o tsunami e o terremoto como correspondente estrangeiro

Os brasileiros que cruzaram a fronteira com a Argentina para buscar asilo ou refúgio contra os processos de 8 de janeiro estão bem assistidos e orientados por advogados que conhecem as normas jurídicas e fazem provocações desafiadoras ao sistema de proteção internacional.

Prisão de apoiadores de Jair Bolsonaro em Brasília, após os ataques de 8 de janeiro - Pedro Ladeira - 9.jan.23/Folhapress

Esses pedidos de asilo e de refúgio devem ser tomados como parte de uma estratégia mais abrangente, que inclui ainda a apresentação de denúncias de violações levadas nos últimos meses a relatores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que tem sede em Washington, além da estranha "passagem" de Jair Bolsonaro pela embaixada da Hungria em Brasília, em 12 de fevereiro, que levantou suspeitas de busca do ex-presidente por um asilo diplomático.

Ao acionar essas leis e organismos internacionais, a extrema direita invade as instâncias, o léxico e as estratégias que durante décadas foram domínio exclusivo da esquerda, sobretudo quando perseguida pela ditadura militar.

Com isso, os apoiadores do ex-presidente que ontem chamavam os direitos humanos de "esterco da vagabundagem" hoje buscam abrigo nesse mesmo ramo do direito contra os processos judiciais que têm em curso contra si.

A lei diz que "toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos", assim como "todo Estado tem direito a conceder asilo" à pessoa que acredite ser "perseguida" por suas "opiniões políticas".

Esse direito não se aplica, entretanto, "às pessoas a respeito das quais houver razões sérias para pensar que tenham cometido um crime grave de direito comum".

O parágrafo acima foi escrito com pedaços da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e da Convenção sobre Asilo Diplomático de 1954, quatro documentos internacionais aos quais o Brasil aderiu espontaneamente e está obrigado a respeitar.

É essa a cartilha que a defesa dos acusados pelo 8 de janeiro estudou e anda levando consigo debaixo do braço.

Caberá aos solicitantes de refúgio e asilo provar aos órgãos argentinos que não estão fugindo de "um crime grave de direito comum" cometido no Brasil, mas são vítimas de uma perseguição por suas "opiniões políticas".

Já o Estado brasileiro terá de, no contexto político dessas gestões e no debate público estabelecido agora, apresentar argumentos contrários, de que essas pessoas tentam perverter o instrumento legal da concessão de asilo e de refúgio para escapar da punição pelos crimes comuns que cometeram.

O presidente argentino, Javier Milei, pode, se quiser, dar logo "asilo" a essas pessoas, que é o instrumento mais rápido e prático de proteção internacional e não requer muita justificativa teórica ou conjunto probatório de perseguição. Ou o Estado argentino vai analisar a concessão de "refúgio", que é um instrumento mais robusto e burocrático, mas que requer embasamento e justificação contundentes de parte de quem pede.

De um jeito ou de outro, a Argentina ainda pode abrigar essas pessoas por um bom tempo, antes de tomar uma decisão, pois a lei diz que os países que receberem solicitações de refúgio "não expulsarão um refugiado que se encontre regularmente no seu território" e a "expulsão desse refugiado somente ocorrerá em virtude de decisão proferida conforme o processo previsto por lei".

Além disso, caso venha a rechaçar o refúgio e não atenda aos pedidos de extradição, a Argentina deve dar a essas pessoas "um prazo razoável para procurar obter admissão legal em outro país".

Se quiser ajudar ainda mais essas pessoas, a Argentina pode ainda alegar respeito ao princípio de non refoulement (não devolução), pois a lei diz que "nenhum dos Estados contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada".

Em última instância, um impasse insolúvel sobre o tema teria de ser dirimido pela Corte Internacional de Justiça, que tem sede em Haia, e é a mesma que analisa as acusações de genocídio, feitas pela África do Sul contra Israel.

O caso poderia também fazer escala na OEA (Organização dos Estados Americanos). Com isso, o Brasil frequentaria um escaninho de instabilidade mais frequentado por vizinhos como Bolívia, Equador e Venezuela.

Se levar o impasse tão longe, Milei pode causar danos não apenas ao presidente Lula e ao ministro Alexandre de Moraes, mas também à esquerda, de maneira mais ampla. Para isso, entretanto, é preciso acreditar que o presidente argentino esteja mais motivado por uma guerra ideológica internacional que pelo respeito às leis.

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