Brasil não tem dados de abuso que resulta em gravidez precoce

Ausência dessas informações torna impossível descobrir a real dimensão do problema no país

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São Paulo

Aos 15 anos, Flora foi estuprada pelo namorado dez anos mais velho sob a mira de uma arma. Era 1979, e ela tinha saído de carro com ele. “A gente começou a se beijar, se abraçar, e ele tentou tirar minha roupa. Eu falei ‘não, eu sou virgem’, e aí ele puxou a arma e me ameaçou.”

Flora (nome alterado a pedido) diz que foi forçada a manter o relacionamento após o estupro. “Ele me chantageava, dizia que ia contar para todo mundo que eu não era mais virgem.” O temor de que a notícia se espalhasse na pequena cidade mineira em que morava fez com que ela se calasse.

“Eu não podia contar para ninguém, denunciar então nem pensar. Na minha cabeça, se ele era meu namorado e tinha feito aquilo, a responsabilidade era minha.”

Se ainda hoje é difícil tocar no assunto, naquela época era impensável. “Nesse momento você só recebe duas coisas: julgamento e condenação. É mínima a questão de apoio. Eu senti um abandono total.”

Poucos meses depois, a mineira descobriria que estava grávida e veio a pressão familiar. O casamento antes dos 16 anos, que foi proibido em 2019, era até então permitido com a autorização dos pais.

Mãe aos 15, Flora conta que teve que largar a escola para cuidar do bebê. O casamento foi um desastre. “Foram sete anos casada com um homem com quem eu não conseguia me relacionar. Só sabia que não queria encostar nele.”

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um estupro é registrado a cada oito minutos no país. Em 2019, foram 66 mil boletins de ocorrência. Em 74% dos casos, as vítimas tinham até 17 anos.

Os dados também mostram que o estuprador é alguém conhecido em 84% das vezes, seja por pertencer ao núcleo familiar da vítima ou por ter algum vínculo de confiança com ela —o caso de Flora.

As taxas brasileiras de gestação na adolescência também têm números altos. Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), em parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), revela que 68 a cada 1.000 brasileiras se tornam mães entre 15 e 19 anos; a média global é de 46/1.000. São registrados mais de 400 mil partos nessa fixa etária por ano, 26 mil deles antes dos 14 anos.

O Brasil não tem dados do percentual dessas gestantes que foram vítimas de violência sexual, o que torna impossível descobrir a real dimensão do problema, afirma Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta.

Essa conexão só é possível nos partos envolvendo menores de 14 anos, já que, do ponto de vista legal, qualquer menina que dê à luz antes dessa idade é considerada vítima de estupro de vulnerável. Mas nem esses casos costumam ser vistos com a gravidade que deveriam, ressalva Luciana, porque o país também convive com uma naturalização da maternidade precoce.

“É a violência gravíssima que não é não vista como tal. Quando se fala em estupro de vulnerável, as pessoas pensam na relação violenta, mas existe também a lógica da relação permitida socialmente, que é a de homens mais velhos com mulheres muito novas.”

A advogada cita exemplos de meninas de 13 anos que engravidam de homens de 40 e passam a viver com eles. “Muitas vezes a família nem liga, porque é visto como um casamento, um homem para sustentar a menina.”

Naturalização também é a palavra usada pelo gerente da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, ao falar sobre a exploração sexual infantil, que ocorre quando há algum tipo de compensação financeira ou material pelo ato.

Esses casos são mais frequentes em contextos de alta vulnerabilidade, no qual o sexo é muitas vezes trocado por benefícios, o que leva famílias a fazerem vista grossa —isso quando os parentes não atuam como agenciadores.

“Pessoas que acompanham de perto essa realidade estão vendo o número de vítimas aumentar, porque as famílias levam as crianças [para a exploração], em consequência da pandemia e da fome.” Assim, diz, não será surpresa se houver também crescimento da gravidez na adolescência.

“É comum que meninas em situação de exploração sexual engravidem. É difícil que essas adolescentes cheguem aos 16 anos sem ter passado por pelo menos uma gravidez.”

Nesse contexto, muitas jovens optam pelo aborto, mas quase nunca através do sistema público de saúde. A maioria deles é provocada pelas próprias mulheres, usando técnicas populares, diz Itamar.

O aborto no Brasil é permitido em casos de estupro, risco para a saúde da mãe e anencefalia do feto. Na prática, porém, o acesso a esse direito costuma ser dificultado.

Luciana Temer cita o caso da menina de dez anos do Espírito Santo, vítima de estupro, que passou por uma saga para conseguir abortar. “A negativa de acesso começa quando o sistema de saúde deixa de informar à criança que ela tem o direito de tirar o filho.”

Ainda assim, o Sistema de Informações Hospitalares do SUS registra, em média, seis abortos na faixa de 10 a 14 anos por dia. Desde 2008, foram 32 mil. Mas o número de partos nessa faixa etária no mesmo período —310 mil— indica que, na maioria dos casos, a gravidez é continuada.

Segundo estudo da ONG Plan International, gestação é a maior razão das uniões realizadas antes dos 18 anos. O Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de casamentos infantis, atrás de Índia, Bangladesh e Nigéria.

A maternidade responde ainda por boa parte da evasão escolar. Pesquisa de 2016 do Ministério da Educação mostrou que 18% das mulheres de 15 a 29 anos que haviam interrompido os estudos o fizeram após se tornarem mães.

“Se a aluna não consegue vaga na creche perto da escola e o pai não é presente, ou alguém da família não pode levar a criança, ela não vai conseguir estudar”, diz Lisandra Paes, coordenadora pedagógica ora locada na Secretaria Municipal de Educação de SP.

Na escola da zona norte em que é professora, são cerca de dez casos anuais de grávidas no ensino médio, das quais a maioria permanece estudando, graças ao trabalho de acolhimento feito pela coordenação e pelos professores.

“É preciso ser flexível com os horários, caso a mãe tenha que levar a criança na creche, ir ao médico. É pensar numa estratégia de acompanhamento pedagógico para quando a menina estiver afastada e depois da licença-maternidade. Com rede de apoio interna na escola, há mais casos de sucesso do que de fracasso.”

Para Luciana Temer, toda gravidez precoce deveria ser encarada pela sociedade como uma violência, já que ela interrompe o desenvolvimento integral da adolescente.

“A dificuldade em completar os estudos é um problema concreto. A chance de não se qualificar para o mercado de trabalho, de não conseguir uma inserção adequada e de ter que se desdobrar para sustentar a criança também é muito grande. É uma violência social de alguma forma.”

Uma violência que, no caso da mineira Flora, se somou à do abuso. Passados 42 anos, ela só contou sobre seu estupro às filhas e ao terapeuta. Flora diz que já não carrega mais o mesmo sofrimento, felizmente mitigado por anos de terapia. Mas ele não desapareceu. “Fica uma ferida que é difícil de cicatrizar, principalmente na confiança. É como se o masculino não fosse um terreno seguro.”

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