Arte será essencial à saúde na readaptação do pós-pandemia

Linguagens da cultura podem refazer elos; inclusão digital é o grande desafio

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Duque de Caxias (RJ)

A presença da arte e da cultura na vida das pessoas será fundamental para o período de readaptação no pós-pandemia​, depois dessa experiência catastrófica e cheia de privações. É assim que a psicanalista Vera Iaconelli define a fase que a humanidade tem enfrentado desde o começo de 2020.

A colunista da Folha e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise foi uma das participantes da mesa Cultura, Educação e Saúde Mental, que fez parte da segunda edição do webinário Vida Cultural na Pandemia e no Pós-Pandemia. O evento foi promovido pela Folha e pelo Instituto Itaú Cultural no dia 18 de agosto de 2021.

Iaconelli diz que está na hora de os seres humanos usarem o principal recurso que têm: a linguagem nas suas diferentes formas. “Como humanidade, sempre produzimos cultura e arte. Precisamos dessas ferramentas para aguentar o tranco da existência.”


Assista ao seminário no vídeo abaixo:


Para Maria Helena Guimarães, socióloga e presidente do Conselho Nacional de Educação, mais do que nunca a cultura deverá ser usada para pensar a volta às aulas. Ela sugere um período inicial em que professores estimulem os alunos a expressarem o que sentem em relação a tudo o que viveram durante a pandemia.

“É uma maneira de avaliarmos a sensibilidade da criança: o que ela está sofrendo, o que ela está sentindo e o que ela está pensando sobre tudo que vivenciou”, explica.

Segundo um relatório da Unesco divulgado em junho deste ano, o Brasil foi um dos países em que as escolas ficaram mais tempo fechadas, com mais de 250 dias.

A presidente do CNE diz que tem sido feitas muitas pesquisas sobre abandono e desempenho escolar nos últimos dois anos, mas existem poucos materiais sobre o estado socioemocional dos alunos.

Ela cita o ensino integral como uma forma de poder doar mais horas de dedicação a atividades culturais e artísticas. Para Guimarães, esse tipo de grade é o objetivo da nova base curricular.

Aprovado em 2018 pelo CNE, o documento tem como base a lei do novo ensino médio, de 2017, que planeja uma parte do currículo do estudante e deixa a cargo dele escolher uma outra área para se dedicar. O jovem pode optar por linguagens, ciências da natureza, ciências humanas, matemática ou ensino técnico.

A Base Nacional Comum Curricular traz o repertório cultural e o pensamento crítico e criativo como algumas das competências gerais que o aluno precisa cumprir.

“Houve uma expansão da escola em tempo integral nos últimos três ou quatro anos, que começou com o ensino médio, a partir de um estímulo financeiro do MEC para as redes estaduais, mas ainda é pouco. Só 11% dos sete milhões de alunos do ensino médio estão em escolas de tempo integral.”

A socióloga também afirma que a pandemia serviu para enfraquecer a resistência às tecnologias e às plataformas que estimulam a criatividade de crianças e adolescentes. Para ela, a volta das aulas presenciais pode significar uma reinvenção da escola e dos espaços de aprendizado.

“Uma das maiores dificuldades agora é como reengajar as crianças na escola, uma vez que elas ficaram totalmente apartadas dos amigos e do ambiente acadêmico. A volta às aulas no pós-pandemia pode significar um renascimento.”

Vera Iaconelli define os dias que sucederão a quarentena como um período de escuta. Para ela, o excesso de confinamento ocasionou atritos entre as pessoas, que deverão ser tratados.

“Tanto na família quanto nas escolas, esses recursos [arte e cultura] são o que permitem que estabeleçamos laços menos violentos, mais fraternos e solidários.”

Ela explica ainda que, embora as pessoas tenham se aberto mais à ideia de conversar com um psicanalista, muitas têm confundido sofrimento com adoecimento, isto é, achando que estar triste significa estar em depressão, com ansiedade ou outro problema psíquico. Para que a dor não se transforme em doença, ela indica: “Que a gente possa escutar os outros, mais que qualquer outra coisa”.

Iaconelli chama a atenção para os desafios que o atendimento a distância traz aos psicólogos e psicanalistas. As consultas virtuais não são as ideais, segundo ela, mas têm sido essenciais para democratizar o acesso aos profissionais de saúde mental.

Paulo Zuben, diretor artístico-pedagógico da Santa Marcelina Cultura, afirma que também teve problemas para se adaptar ao mundo digital com a chegada da Covid-19. Professor de música no Projeto Guri, ele conta que foi um desafio repensar a maneira como ensinou durante toda a sua carreira, tendo agora que estar no mundo online.

O Guri é uma organização social, mantida pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, que atende jovens de 6 a 18 anos. No projeto, eles aprendem a tocar instrumentos e têm aulas de cantos, entre outras atividades musicais.

Zuben afirma que a tecnologia tornou o projeto mais acessível. “A plataforma digital permite uma maior democratização, na medida em que é possível alcançar um maior número de pessoas. O desafio é manter a qualidade do ensino e a profundidade das relações.”

Com a interrupção das aulas presenciais, alguns dos aprendizes do programa perderam o estímulo para continuar se dedicando à música. A diminuição das atividades, a dificuldade de acesso à internet e a falta de instrumentos, que antes eram compartilhados entre os estudantes, foram alguns dos motivos. Zuben diz que, antes da pandemia, cerca de 18 mil alunos eram atendidos. Hoje, menos de 10 mil fazem as aulas.

Para Zuben, a música é uma arte que une as pessoas, e isso precisa se refletir na hora de tocar. “O programa trabalha muito com a ideia de música para escutar o outro e fazer junto. A sintonia não é só o som que você produz, mas como você o faz. Isso envolve uma sintonia entre as pessoas”, explica.

O musicista acredita que é hora de olhar a dificuldade de acesso à tecnologia que alguns brasileiros enfrentam, porque o mundo virtual está longe de acabar. “A distância não veio para substituir, mas sim para ficar.”

Conforme mostra a pesquisa Hábitos Culturais, realizada pelo Datafolha e pelo Itaú Cultural, 76% dos entrevistados têm acesso à internet diariamente, um aumento de cinco pontos percentuais em comparação a 2020. Entretanto, apenas 54% daqueles pertencentes às classes D e E acessam diariamente a rede, frente a 91% na classe A.

O mediador do webinário, Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural, diz que iniciativas como o Guri são fundamentais, porque tornam protagonistas pessoas que dificilmente teriam acesso ao ensino das artes. Ele apresentou dados da pesquisa do Datafolha para mostrar como as atividades culturais são capazes de impactar a sociedade.

No levantamento, 49% disseram que as atividades online foram importantes para diminuir a sensação de solidão. A maioria relatou que essas atividades melhoraram as relações com outras pessoas com as quais conviviam.

“A arte e a cultura acolhem, incluem, ajudam, apoiam e criam melhores condições para ampliar a qualidade de ensino”, diz Saron.

Como os outros participantes, Saron crê que o próximo desafio a ser pensado é a barreira tecnológica. “Acesso à internet é direito fundamental, como escola e cultura.”

O conteúdo completo sobre o seminário pode ser acessado no link folha.com/culturanapandemia.

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