Descrição de chapéu Por que ir ao espaço

Space X sonha com foguete rapidamente reutilizável para povoar Marte

Considerada o santo graal da astronáutica, nave baratearia todo o processo

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São Paulo

Nos arredores do vilarejo de Boca Chica, no Texas, quase divisa com o México, câmeras registram e transmitem pela internet, 24 horas por dia, sete dias por semana, uma intensa movimentação de trabalhadores com guindastes, todo tipo de elemento estrutural de engenharia e foguetes, laboriosamente construídos diante de olhares curiosos, sendo deslocados entre vários hangares e ganhando formas e detalhes a todo momento. É lá que a Space X estabeleceu o centro conhecido como Starbase, de onde devem partir os primeiros lançadores Starship. O objetivo? Tornar a humanidade uma civilização multiplanetária.

Para quem acompanha a indústria espacial há algum tempo, praticamente tudo que acontece lá beira o insano. Ninguém nunca construiu foguetes de grande porte em tendas improvisadas, montando-os diante de entusiastas que transmitem tudo que acontece por lá e especulam diariamente quais serão os próximos passos.

Sob a batuta do bilionário Elon Musk, o “projetista-chefe”, uma orquestra crescente de funcionários trabalha, dia e noite, para buscar o que é considerado o santo graal da astronáutica: um foguete rapidamente reutilizável.

Musk se mudou para lá para morar em uma casinha pré-fabricada de 36 m² e acompanhar de perto o que a sua equipe está fazendo, e pouco a pouco o que parecia apenas uma ideia insana foi convertendo um número cada vez maior de descrentes. A essa altura, até a Nasa abraçou o projeto, fechando um contrato com a Space X, por US$ 2,9 bilhões, a fim de usar o Starship como veículo para levar astronautas de volta à Lua pela primeira vez desde as missões Apollo, encerradas em 1972.

A meta declarada da agência espacial americana, desde o governo Trump, é realizar esse primeiro pouso tripulado em 2024. É altamente improvável que esse prazo possa ser cumprido; em um relatório apresentado em 10 de agosto, o Escritório do Inspetor-Geral da Nasa declarou que até os novos trajes desenvolvidos para as caminhadas lunares não devem estar prontos para voo até pelo menos abril de 2025.

Elon Musk reagiu rápido no Twitter: “A Space X pode fazer isso, se a necessidade existir.”

Falhar depressa e com frequência

Musk claramente tem pressa. Por quê? “Se operarmos com extrema urgência temos uma chance de tornar a vida multiplanetária. É apenas uma chance, não é garantido. Mas se não agirmos com extrema urgência, essa chance é provavelmente zero”, explicou Musk ao receber Tim Dodd, do canal Everyday Astronaut, para um tour pela Starbase.

Essa é a mentalidade que o impele e que torna o programa Starship algo visionário (até agora sem garantias de sucesso): ele mira alto. A arquitetura toda é baseada no objetivo de estabelecer, o mais rápido possível, uma cidade em Marte. Não uma missão, não uma base. Uma cidade. Isso leva a uma meta mais imediata, neste momento sendo perseguida na Starbase: atingir pela primeira vez a órbita com um foguete reutilizável.

A empresa trabalha no projeto desde 2012, e Musk apresentou publicamente a arquitetura do lançador durante o 67º Congresso Internacional de Astronáutica, em 2016. Desde então, muitos dos detalhes do projeto foram modificados, numa das marcas do processo peculiar de desenvolvimento da Space X: fabricar é muito mais importante que projetar; testar é mais importante que antecipar problemas.

“Design é sobrevalorizado; fabricação é subvalorizada”, diz Musk. “Desenvolver um sistema de produção é 10 a 100 vezes mais difícil que desenhar o produto”, ecoando uma lição aprendida a duras penas na Tesla, outra empresa do bilionário que pela primeira vez tornou os carros elétricos atraentes, mas teve enormes dificuldades para desenvolver uma linha de montagem para produção em massa do seu Model 3, veículo mais barato da companhia.

Essa linha de raciocínio deixou muita gente intrigada. A Space X desenvolveu, ao mesmo tempo, seus primeiros protótipos de foguete e a melhor maneira de construí-los, aperfeiçoando-os a cada nova fabricação. Começando pelo que seria o segundo estágio do veículo, o Starship propriamente dito.

Em fevereiro de 2020, o SN1 (Starship Number 1) foi o primeiro deles a ser levado para fora do hangar. O SN2 nem viu a luz do dia, e o SN3, com modificações, apareceu em março. Foi destruído em testes de pressurização de seus tanques. O SN4 apareceu em abril e chegou a passar por disparos estáticos de um motor até ser destruído num desses testes. Os modelos SN5 e SN6 fizeram pequenos saltos de 150 metros com um único motor e pousaram suavemente, em agosto e setembro.

Em dezembro, a companhia estava pronta para um desafio maior, com o SN8: tentar voar acima de 10 km, realizar as manobras previstas para um retorno orbital (em que o veículo desce de barriga e vira para a vertical no último momento para o pouso) e descer suavemente. A tentativa ocorreu em dezembro e chegou muito perto de ser um sucesso total (Musk estimava a chance disso em um terço), mas o pouso se deu em velocidade muito alta e terminou com uma explosão.

O mesmo destino teve o SN9, em fevereiro de 2021. O SN10, em 3 de março, foi o primeiro a conseguir pousar, mas sofreu danos e acabou explodindo oito minutos depois. O SN11, em 30 de março, teve mais problemas e explodiu em pleno ar. A SpaceX decidiu pular os SN12, 13 e 14, para se aproveitar de atualizações ao design feitas para o SN15, que voou em 5 de maio e conseguiu cumprir todos os objetivos e pousar com sucesso.

Há projeto por trás do caos dos voos

A imprensa não especializada recebeu cada um voo, exceto pelo último, como falhas clamorosas. Pelo contrário, havia projeto por trás do caos. Parece insano que, em pouco mais de um ano, a empresa tenha feito tantos aprimoramentos baseados em experiência de voo, versus simulações e design.

Veremos processo similar para o primeiro estágio do veículo, chamado de Super Heavy. Pense no foguete inteiro como um veículo de dois andares. O primeiro é o Super Heavy, o segundo é o Starship propriamente dito, a nave interplanetária. Ambos usam os mesmos motores Raptor desenvolvidos pela Space X, que queimam metano com oxigênio líquido. Por que metano? Além do desempenho e da maior facilidade para lidar com ele, é um combustível facilmente fabricável com material local em Marte.

Em Boca Chica, o primeiro Super Heavy, BN1 (Booster Number 1) foi feito apenas para testar métodos de fabricação. O BN3 passou por disparos estáticos com três motores, e o BN4 (agora simplesmente chamado de Booster 4) foi colocado na plataforma para voo orbital em agosto. Foi o primeiro do tipo a ter um conjunto completo de motores (29 ao todo, embora futuros modelos devam ter 32) e, no dia 6, pela primeira vez vimos um conjunto completo: o Ship 20 (SN20), com seus seis motores instalados, colocado sobre o Booster 4. É com essa configuração que a SpaceX pretende fazer sua primeira tentativa de atingir a órbita com o revolucionário veículo.

Elon Musk, fundador da Space X
Elon Musk, fundador da Space X - Michele Tantussi/Reuters

Entenda o tamanho das coisas: o Booster tem 69,5 metros; o Starship, 50 metros. Juntos, eles se elevam a 119,5 metros, o equivalente aproximado a um prédio de 40 andares. Com isso, ele é um pouquinho maior que o Saturn V, foguete gigante de três estágios que levou humanos à Lua no século passado pelo programa Apollo, e com uma capacidade similar: cerca de 100 toneladas podem ser transportadas até uma órbita terrestre baixa. Ele também é parecido com o SLS (Space Launch System), foguete desenvolvido pela Nasa para o programa Artemis, de retorno à Lua, baseado em tecnologias dos aposentados ônibus espaciais (os motores, inclusive, são exatamente os mesmos; foram desconectados dos ônibus e plugados no novo foguete).

Repare, contudo, a diferença: tanto o SLS como o Saturn V são descartáveis – cada voo, um foguete inteiramente novo. Até agora a Boeing (contratante principal do SLS) fez um único veículo, para a missão Artemis I, que deve voar entre o fim de 2021 e 2022. Foram investidos ao todo quase US$ 20 bilhões, desde 2011, e na Casa Branca estima-se o custo de cada voo em US$ 2 bilhões. É basicamente o modelo “absurdamente caro” de sempre, que inviabiliza uma base na Lua, que dirá uma cidade em Marte.

Se o Starship conseguir chegar à órbita, mesmo que fosse inteiramente descartável, seria absurdamente mais barato. Mas o plano é que ele seja reutilizável. E rapidamente. “Ele precisa ser como um avião”, resume Musk.
Seguindo a filosofia da Space X, a primeira tentativa se concentrará em chegar ao espaço sem explodir, embora o voo preveja um retorno do primeiro estágio, bem como uma volta do segundo estágio (de novo treinando pouso vertical no mar), após apenas um círculo ao redor da Terra, perto do Havaí. “Se explodir depois de sair da torre de lançamento, já está bom, porque reconstruir a infraestrutura da torre é muito mais complicado do que fazer um novo foguete”, diz Musk.

Ninguém sabe quando vai acontecer. A empresa provavelmente está a um mês ou dois de fazer uma tentativa, mas o esforço ainda depende de uma análise de impacto ambiental conduzida pela FAA (agência de aviação civil americana), que regulamenta o lançamento comercial de foguetes. Depois dessa aprovação, futuras tentativas devem ser liberadas mais facilmente.

Ainda há muita tecnologia a ser demonstrada antes que o Starship atinja seu potencial pleno. Será preciso provar não só reentradas atmosféricas bem-sucedidas, mas manobras como reabastecimento orbital (nunca feito antes), para que o veículo possa servir para pouso na Lua ou Marte.

A ideia é que naves-tanque com o mesmo formato do Starship sejam lançadas e acoplem a ele para transferir combustível destinado às missões interplanetárias. Isso aumenta enormemente a capacidade de transporte de carga à Lua ou a Marte, elevando-o acima de 100 toneladas.

Tudo isso deve acontecer nos próximos anos, com a fabricação acelerada de mais e mais veículos. Nos planos desvairados de Musk, a Space X poderá ter cerca de 1.000 Starships operando simultaneamente, cada um capaz de levar 100 pessoas a Marte. Janelas de lançamento para Marte se abrem a cada 26 meses. Lançando 1.000 Starships com 100 pessoas em cada oportunidade, seria possível atingir a meta de levar 1 milhão de habitantes até lá em pouco mais de duas décadas. Essa é a conta básica que baliza todo o projeto.

Loucura? Talvez. Mas mirando alto, algumas metas mais “modestas”, como manter um punhado de astronautas numa base lunar, transportar 100 pessoas de cada vez em voos ultrarrápidos de um ponto a outro da Terra, explorar recursos naturais no espaço ou lançar telescópios espaciais, sondas e satélites com capacidades jamais permitidas antes pelas limitações de outros veículos se tornam brincadeira de criança.

Uma revolução espacial já se descortina diante da humanidade no século 21. Resta saber se os avanços vindouros serão suficientes para que o Sistema Solar se torne sua casa, e não apenas o seu quintal.

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