Um terço da população do país ainda rejeita filme brasileiro

Pesquisa mostra que as comédias são vistas como o principal ponto positivo da produção nacional

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ana Paula Sousa

Jornalista e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

São Paulo

Das 2,2 mil pessoas ouvidas pela pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Itaú Cultural, 19% nunca foram ao cinema para ver um filme brasileiro. Quando a pergunta é direcionada para o vídeo sob demanda, o percentual é até um pouco maior: 22% dos usuários das plataformas só viram, até hoje, filmes estrangeiros ou séries.

Os dados revelam o lugar que filmes brasileiros ocupam na prática cultural da população. De um lado, é inimaginável que em países como França, Coreia do Sul ou Japão, onde as cinematografias locais são fortes, uma fatia dessa do público nunca tenha visto uma produção nacional.

De outro lado, a informação de que 80% da população já viu um filme brasileiro no cinema dá materialidade a um fato significativo: nos últimos 20 anos, a produção local reencontrou-se com o público.

Nunca é demais lembrar que, na década de 1990, quando a política pública para o setor foi assolada, nem quem quisesse conseguiria ver filmes brasileiros no cinema. Em 1992 e 1993 foram lançados, respectivamente, dois e quatro longas. A ocupação de mercado era quase nula.

Em 2019, o último ano de cinemas funcionando sem as restrições pandêmicas, ganharam a tela grande, de acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), 167 filmes brasileiros. Apesar de corresponder a 37% do total de títulos que chegaram ao circuito naquele ano, esse conjunto de filmes vendeu 13,6% do total de ingressos. Nos últimos dez anos, o market share médio foi de 14%.

Dentre aqueles que pagaram ingresso para entrar numa sala de cinema —seja antes, seja durante a pandemia— para ver um longa-metragem produzido no país, a maioria (57%) o fez “poucas vezes”, mostra o levantamento. Apenas 26% das pessoas das classes D/E afirmaram ver filmes brasileiros “muitas vezes”; nas classes A/B, o percentual é de 31%.

As respostas vão ao encontro de uma realidade constitutiva do mercado audiovisual contemporâneo, que é a concentração do público em alguns poucos títulos.

No caso do Brasil, os filmes que fizeram sucesso nas duas últimas décadas estiveram quase sempre ligados à GloboFilmes e se concentraram em um gênero: a comédia.

Houve, entre as grandes bilheterias, títulos que tematizam a violência, como ‘‘Cidade de Deus’’ (2002), ‘‘Carandiru’’ (2003), ‘‘Tropa de Elite’’ (2007) e ‘‘Tropa de Elite 2: o Inimigo Agora É Outro’’ (2010). Mas nenhum gênero alcançou tanta popularidade e teve tanta constância quanto a comédia.

Basta lembrar de ‘‘O Auto da Compadecida’’ (2000), ‘‘Se Eu Fosse Você’’ (2006) e das franquias ‘‘De Pernas Pro Ar’’, ‘‘Até que a Sorte nos Separe’’ e ‘‘Minha Mãe É Uma Peça’’ —que renderam três filmes cada uma.

Por mais que seja difundida a percepção de que esse gosto é tipicamente brasileiro, a liderança das comédias nas bilheterias é uma característica comum a diversos cinemas nacionais. Ela se repete tanto na Europa quanto na América Latina.

Não é, portanto, surpreendente que diante da pergunta “O que você mais gosta nos filmes nacionais?”, os entrevistados não tenham titubeado em responder “comédia”. O gênero é apontado como o principal “aspecto positivo” da produção local por 46% dos brasileiros ouvidos. Outros 19% se referem positivamente à mensagem que os filmes passam sobre “nossa realidade e nossa cultura”.

Já quando a pergunta vai no sentido oposto, daquilo de que os ouvidos menos gostam, o “conteúdo” é citado por 37% dos respondentes, que mencionam a presença de “palavrões” e “violência”.

A impressão de “má qualidade”, que já foi um fantasma a perseguir o cinema brasileiro, surge, porém, diluída. Observações relativas à “execução” e “direção” foram feitas por apenas 8% dos entrevistados.

Há, no entanto, uma nuance curiosa na percepção de qualidade. Dentre aqueles que viram filmes brasileiros, 65% dizem que recomendariam aos amigos a experiência.

Já entre a população geral, num típico movimento de “não vi e não gostei”, o índice de “detratores”, de gente que ainda rejeita a produção local, é de 34%. Utilizou-se para esse quesito o NPS (Net Promoter Score), que é o modelo mais conhecido de pesquisa de satisfação.

A resistência presente em um terço da população reflete a complexidade da relação entre o cinema brasileiro e seu público. As raízes dessa problemática são antigas, e talvez a melhor explicação para ela ainda esteja na “situação colonial” que foi descrita pelo crítico Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977).

Essa condição pode ser resumida pela própria história do cinema nos países periféricos, onde “o hábito do cinema foi adquirido (...) pelo consumo de filmes estrangeiros”.

No Brasil, além de enfrentar o domínio da produção de Hollywood, o cinema teve de lidar com uma outra hegemonia, a da televisão aberta que, por anos, reinou quase sozinha no mercado.

Reinou. Mas não reina mais.

O novo jogo de forças estabelecido no campo audiovisual evidencia-se na lista dos filmes mais vistos. Três grandes sucessos das salas de cinemas aparecem nas primeiras posições: ‘‘Minha Mãe é Uma Peça’’, ‘‘O Auto da Compadecida’’ e ‘‘Tropa de Elite’’. Mas a quarta e o quinta posições são ocupadas por duas produções da Netflix: ‘‘Os Salafrários’’ e ‘‘Cabras da Peste’’.

Entre os entrevistados que souberam citar o último filme nacional a que assistiram, 39% disseram que o acesso se deu pela televisão. As plataformas de vídeo sob demanda, mais presentes entre as classes A e B, foram a opção de 31%; a pirataria, de 17%; e o cinema, de 12%.

Embora ainda reflita parcialmente aquilo que ocorre no mercado de exibição tradicional, com os filmes de grandes estúdios ficando entre os mais vistos, o streaming altera um velho estado de coisas.

Plataformas de streaming disputam títulos nacionais

Na sondagem sobre hábitos culturais realizada por Itaú Cultural e Datafolha, 42% das pessoas entrevistadas mostraram interesse por uma plataforma de audiovisual e cinema nacional. Se esse serviço for gratuito, o interesse aumenta em 31 pontos percentuais.

Não por acaso, as plataformas têm disputado títulos brasileiros. No início deste ano, a Netflix celebrou o sucesso da comédia ‘‘Tudo Bem no Natal Que Vem’’, com Leandro Hassum, e anunciou a intenção de produzir novos filmes nacionais e de comprar títulos prontos.

O GloboPlay, por sua vez, criou um cardápio de grandes filmes da história do cinema brasileiro, buscando se posicionar como a plataforma com o melhor catálogo nacional.

Um detalhe interessante, quando se comparam as enquetes sobre as salas de exibição e o streaming é que, nas plataformas, a produção local consegue despertar maior interesse da faixa etária que, na pesquisa, aparece como mais distante do produção nacional —a de 16 a 24 anos.

Enquanto 21% dos jovens disseram nunca ter visto um filme brasileiro no cinema, esse índice, no streaming, cai para 13%.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.