Descrição de chapéu 2º Seminário Economia da Arte

Setor da cultura precisa diversificar suas fontes de financiamento

Debatedores defendem gestão profissional e uma menor dependência da Lei Rouanet

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São Paulo

O modelo de financiamento à cultura no Brasil, centrado na Lei Rouanet e historicamente marcado por descontinuidades, cria entraves ao planejamento de médio e longo prazos e à profissionalização da gestão de instituições e projetos culturais.

O desenho de novas ferramentas legais, como fundos patrimoniais, e a diversificação das fontes de recursos podem mudar esse cenário, discutido por participantes da segunda edição do seminário Economia da Arte, realizado pela Folha e pelo Itaú Cultural na manhã da segunda-feira (19).

A Lei Rouanet, concebida no início dos anos 1990 como parte de um sistema amplo de financiamento à cultura, se tornou o mais importante instrumento federal de investimento público no setor —e alvo preferencial das críticas de Jair Bolsonaro à produção cultural.

O mediador, Eduardo Saron (esq.), Renata de Almeida, diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Ricardo Levisky, presidente da Levisky Legado, e João Leiva, diretor da consultoria JLeiva Cultura & Esporte, durante o seminário, em São Paulo - Reinaldo Canato/Folhapress

Em abril, o Ministério da Cidadania instituiu novas regras da Rouanet, que diminuíram o teto de captação de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão por projeto e limitaram a 16 os projetos aprovados por proponente, com valor total máximo de R$ 10 milhões. Ao mesmo tempo, várias exceções foram criadas, permitindo que ações em museus e na área de patrimônio cultural, por exemplo, possam ultrapassar o valor máximo.

João Leiva, diretor da consultoria JLeiva Cultura & Esporte, avalia que o debate sobre o tema no país é monopolizado pelo instrumento de renúncia fiscal. “A Lei Rouanet passou a ter que dar conta de tudo. Enquanto apostarmos todas as fichas na lei, não chegaremos a um bom termo”, afirmou.

A centralidade da Rouanet no modelo de financiamento às artes explica o peso dos eventos —como exposições, festivais de cinema e temporadas de teatro— nas estratégias de organizações culturais no Brasil, de acordo com Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural.

A ausência de formatos mais estáveis de captação de recursos cria um descompasso entre o calendário sazonal dos eventos e a necessidade de arranjos administrativos permanentes. “É um tanto antagônico”, disse.

Essa é uma das dificuldades enfrentadas pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Renata de Almeida, diretora do festival que completa 43 anos, relatou que faltam meios para conciliar a organização da próxima edição do evento —que inclui atividades como levantar recursos com patrocinadores e apresentar resultados quando a exibição dos filmes acaba— com a montagem de uma estrutura perene para a Mostra.

“Há sempre um incêndio para apagar. Temos que mudar essa mentalidade, mas é difícil com as condições que a gente tem”, afirmou. Manter a mão de obra da Mostra o ano todo foi um dos desafios citados. “Eu amaria ter gestão e equipe [profissionais], mas as melhores pessoas que eu treino arrumam emprego em outros setores.”

As normas de uso de recursos da Rouanet foram apontadas como um obstáculo adicional à gestão orçamentária de ações culturais. “A Lei Rouanet não permite que você tenha qualquer outro recurso que não seja usado no próprio evento”, disse Almeida.

Saron lembrou que, hoje, é possível remanejar para o ano seguinte recursos de planos anuais —a flexibilização, no entanto, não resolve o problema, em sua avaliação.

Para ultrapassar o monopólio da Lei Rouanet, é preciso cobrar maior engajamento de estados e municípios em políticas culturais, de acordo com Leiva.

 

O especialista em fundos patrimoniais Ricardo Levisky argumentou que a diversificação de fontes de receitas é uma das medidas indispensáveis para avançar em direção à sustentabilidade financeira das organizações da cultura.

Levisky, que preside uma empresa de consultoria que oferece serviços de gestão a corpos artísticos, equipamentos culturais e fundações empresariais, defendeu que a profissionalização da governança dessas instituições, incluindo os processos de tomada de decisão nos conselhos, deve ser prioridade.

Em sua avaliação, sobra personalismo e falta visão de longo prazo no setor cultural, o que inibe investimentos privados: “Muitas vezes as pessoas querem doar, mas não encontram esse arcabouço jurídico e de governança. ‘Mas e se mudar o maestro, essa instituição vai continuar existindo?’, se perguntam”.

Os debatedores concordaram que é preciso produzir e difundir estatísticas do setor para convencer empresários, governantes e o público que a produção cultural tem papel importante no desenvolvimento econômico do país.

Para Eduardo Saron, medir o impacto econômico da cultura ajuda a construir legitimidade para o financiamento do setor.

João Leiva, que estuda e mora em Londres, citou dados do governo alemão que mostram que a economia criativa e a indústria automobilística geram o mesmo número de empregos no país.

Renata de Almeida concorda. “Não tem como não dependermos do mecenato e do governo, mas, por muito tempo, o setor cultural teve resistência em apontar a sua importância econômica. Em um mundo em que um dos maiores problemas é o desemprego, nós geramos emprego”, disse.

Ela lembrou, porém, que nessa área existe uma dimensão subjetiva impossível de ser medida. “Duas senhoras vieram me agradecer na Mostra do ano passado e disseram que elas eram mais felizes naqueles dias. Temos que fazer pesquisas medindo o impacto econômico, mas também o impacto na vida das pessoas.”

Marcos da política cultural do Brasil

1937 Criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, precursor do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão federal de preservação do patrimônio cultural brasileiro

1975 Criação da Funarte (Fundação Nacional de Artes), com a proposta de estimular a produção artística nacional

1985 Fundação do Ministério da Cultura, com o objetivo de fomentar as expressões da cultura nacional e promover a preservação do patrimônio histórico e cultural do país

1986 Aprovação da Lei Sarney, primeira lei federal de incentivos fiscais à cultura, que instituiu o abatimento de impostos para o setor privado investir na área

1991 Aprovação da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, baseada em uma política que incentiva empresas e cidadãos a investir parte do Imposto de Renda em projetos culturais

1993 Aprovação da Lei do Audiovisual, que criou mecanismos de incentivo fiscal específicos a investimentos em produções audiovisuais

1998 Fundação da primeira organização social de cultura, o Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza (CE). Atualmente, a OS gerencia um complexo cultural composto por dez instituições

2001 Governo federal cria a Ancine (Agência Nacional do Cinema), que regula, fomenta e fiscaliza o mercado audiovisual, e institui a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), que incide sobre o setor e financia produções audiovisuais

2006 O Brasil adota a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco, que prevê a elaboração de políticas culturais de estímulo à diversidade cultural nacional

2006 Criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que concentra a arrecadação da Condecine e financia atividades de produção, distribuição e exibição audiovisual

2010 Aprovação do Plano Nacional de Cultura, conjunto de princípios e metas que orienta a elaboração de políticas públicas de cultura

2012 Criação do vale-cultura, benefício trabalhista de R$ 50 mensais, concedido pelo empregador e destinado ao pagamento de produtos e serviços culturais

2019 Aprovação de lei que regulamenta a criação de fundos patrimoniais (endowments), que permite que organizações sem fins lucrativos recebam doações para fundos de financiamento de longo prazo

2019 Extinção do Ministério da Cultura. Suas funções foram atribuídas à Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania

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