Descrição de chapéu 2º Seminário Economia da Arte

Entenda como o cinema brasileiro vem sendo financiado até agora

Estrutura de fomento viabilizou desde obra mais autoral festejada pela crítica até franquia que é sucesso de público

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Pedro Butcher
São Paulo

O atual modelo de financiamento do audiovisual brasileiro é resultado de uma lenta reconstrução que se seguiu ao blecaute causado pela extinção da Embrafilme e de órgãos de apoio, pelo então presidente Collor, em 1990.

Entre 1992 e 1994, a participação da produção nacional nas salas de cinema, que no fim dos 1980 estava em 20%, caiu a quase zero. Com a TV ainda fechada à produção independente, a atividade só não entrou em colapso total graças a um mercado publicitário em expansão e à realização mais pontual de videoclipes, documentários e curtas.

A produção e a circulação foram aumentando na medida em que surgiam mecanismos e instituições de suporte, em um processo de recuperação. 

A tecnologia digital, que chegou primeiro à produção, democratizando e barateando a realização de filmes, alcançou a distribuição e a exibição, causando terremoto na cadeia, com efeitos nas formas de circulação das obras e nos hábitos do consumidor.

Já marcado por imprevisibilidade, o setor ganhou novas camadas de risco.

Na base desses mecanismos criados está a constatação de que o audiovisual é marcado por grande assimetria, simbolizada pela força econômica e cultural do cinema anglófono e de conglomerados de mídia de capital transnacional. Países que desejam alguma visibilidade nesse setor estratégico adotaram medidas de proteção e estímulo.

Hoje, o audiovisual brasileiro conta com uma série de ferramentas que foram sendo criadas enquanto o mercado crescia e se transformava. No decorrer do tempo, tiveram importância maior ou menor, mas cumpriram algum papel. A Lei Rouanet (1991) e a Lei do Audiovisual (1993) deram um primeiro impulso à recuperação do cinema. Com a Agência Nacional de Cinema, em 2001, teve início uma nova fase, que tinha entre seus objetivos romper os ciclos de euforias e depressões para desenhar um desenvolvimento sustentado.

 “A Ancine foi criada com a ideia de um fomento regulador, da constatação de que não há como regular o mercado audiovisual sem o fomento, por conta da assimetria que existe na atividade”, diz Vera Zaverucha, que foi secretária do Audiovisual, integrou a diretoria do órgão, é autora de “Desvendando a Ancine” e consultora de audiovisual.

A política de fomento ganhou impulso em 2006, com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e depois, em 2011, com a “Lei da TV Paga”, que regulou e criou meios para estimular a produção independente brasileira e sua presença na TV por assinatura.

“A lei 12.485 não teria vingado se não fosse o fomento. A premissa é inteligente: criar a obrigação, mas também as condições para que a produção exista”, diz Vera.

A produção de longas-metragens passou por uma polarização entre os títulos de maior orçamento e ambição mercadológica, que encontram espaço nas salas multiplex, e os de baixo orçamento, que em geral circulam por festivais e “salas de arte”.

Talvez a melhor forma de compreender o funcionamento do financiamento audiovisual seja por meio de casos específicos de obras com ambição comercial, em geral circunscritas ao mercado interno, e filmes de baixo orçamento, com maior potencial nos mercados externos.

Vejamos, primeiro, o exemplo da franquia “Minha Mãe é uma Peça”, produzida por Iafa Britz, da Migdal Filmes. O filme é a adaptação da comédia escrita e estrelada por Paulo Gustavo, que começou num teatro em Niterói e se tornou fenômeno de público.

Lançado em 2013, o primeiro longa levou 4,6 milhões de pessoas às salas de cinema e gerou R$ 49,5 milhões. O segundo, de 2016, dobrou os valores: 9,3 milhões de ingressos e receita de R$ 124,2 milhões. O terceiro tem lançamento previsto para dezembro.

Parece uma trajetória suave e previsível. Nada mais enganoso. “O primeiro filme era só dúvidas. Um roteiro baseado num monólogo, um homem atuando como mulher. Enquanto buscava investimento, parceiros potenciais duvidaram do projeto e o recusaram. Entre as sugestões que ouvi, estava a de trocar Paulo Gustavo por uma atriz conhecida. Estávamos naquele lugar de aposta que só conseguimos concretizar com subsídio”, diz a produtora.

A engenharia financeira do primeiro “Minha Mãe é uma Peça” recebeu recursos via Lei do Audiovisual, um aporte significativo do FSA e uma pequena parcela com “product placement”.

“Minha Mãe é uma Peça 2” contou com percentual menor de dinheiro da Lei do Audiovisual, o restante foi investimento privado. “Com o sucesso de bilheteria do primeiro, e a confirmação de Paulo Gustavo como fenômeno em crescimento, criou-se uma expectativa importante em torno do segundo filme”, lembra Iafa.

Para o terceiro, o percentual de valores incentivados é de 30%, e 70% vêm de investidores privados. “Foi uma evolução saudável em direção ao autofinanciamento”, diz Iafa. “Estávamos conseguindo nos planejar com os mecanismos existentes. Hoje, não só por conta do novo governo, mas também do próprio mercado, com a ascensão das companhias de streaming, não consigo prever como um projeto será viabilizado. Como serão as negociações com os novos players, Netflix e Amazon? Os mecanismos são totalmente diferentes e não são óbvios”.

O segundo exemplo, no outro extremo, é o da produtora mineira Filmes de Plástico, que lançou longas consagrados pela crítica, com visibilidade internacional.

Em 2018, “Temporada”, de André Novais Oliveira, foi selecionado para o Festival de Locarno, na Suíça, e ganhou o prêmio de melhor atriz (Grace Passô) no Festival de Turim, na Itália. Por aqui, foi o grande vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Neste ano, “No Coração do Mundo”, de Maurílio Martins e Gabriel Martins, chegou ao mesmo tempo ao cinema e ao vídeo on demand após carreira internacional.

Apesar de ter estreado em 2019, “No Coração do Mundo” é um projeto anterior ao “Temporada”, explica o produtor Thiago Macedo Corrêa: “Submetemos o roteiro de ‘No Coração do Mundo” ao Filme em Minas, edital do governo estadual que não existe mais. Como nunca tínhamos feito longa, colocamos o orçamento no limite mais baixo, para tornar o projeto mais competitivo”. 

O roteiro foi selecionado, mas todos os vencedores do edital receberam a metade do dinheiro que pediram. “Corremos para aprovar o projeto na Ancine. Nosso orçamento era de R$ 714 mil, e a metade, R$ 357 mil, estava garantida pelo Filme em Minas. Foi o grande erro desse nosso início de carreira”, lembra Thiago. 

“Precisávamos buscar uma complementação, mas sempre com esse teto, valor baixíssimo, sobretudo para um filme como esse. Submetemos o projeto ao edital de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura, e fomos contemplados. Poderíamos ter ganhado R$ 1,2 milhão, o limite do edital por filme, mas só pudemos ficar com R$ 357 mil”. Por isso, o longa levou três anos para ficar pronto, com a filmagem dividida em etapas.

“Temporada”, por sua vez, foi mais simples, com uma só fonte de financiamento, o Filme em Minas. “Foi na sétima edição do edital, que só existiu graças à pressão da classe e pelo fato de ter coincidido com a abertura do Fundo Setorial da Ancine para os arranjos regionais”, lembra Thiago.

Nesses arranjos, pensados para reduzir a concentração da produção, o fundo se comprometia a complementar recursos de estados e municípios que abrissem editais. Projetos contemplados receberam R$ 750 mil: R$ 300 mil vinham do governo do Estado e R$ 450 mil do FSA.

Thiago diz que quando a Filmes de Plástico foi criada, a ideia era realizar vídeos institucionais para pagar as contas e poder fazer os filmes.

“No fim, viabilizamos nosso trabalho sem precisar fazer vídeos. Houve coincidência entre o surgimento da produtora e o momento crescente que vivemos até pouco. Os arranjos regionais foram fundamentais, mas muitos acham que estão sob ameaça. Nossa esperança é que com a rede que formamos em festivais seja possível levantar recursos fora do Brasil”.

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