Conselho recomenda que psicólogos não participem de depoimentos de crianças vítimas de violência sexual

Casos em que delegados, juízes e promotores escutam conversa entre profissionais e menores vão contra código de ética da categoria, diz entidade

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São Paulo

Uma menina de oito anos é estuprada pelo padrasto. A mãe dela vai à delegacia e registra um boletim de ocorrência. Lá, uma psicóloga é escalada para conversar com a criança.

Nesse caso hipotético, a criança se sente confiante e conta o que aconteceu. Só que ela não sabe que a sala onde estão só as duas é cercada de câmeras e, em outro ambiente, o delegado assiste toda a conversa. Ele pode inclusive orientar a psicóloga por meio de um ponto eletrônico a fazer determinadas perguntas.

Sala de gravação do complexo de escuta protegida de Vitória da Conquista, na Bahia
Sala de gravação do complexo de escuta protegida de Vitória da Conquista, na Bahia - SECOM/PMVC

"Isso fere a autonomia e o sigilo profissional, porque é a psicóloga quem deve definir como vai fazer as perguntas. Mesmo se a responsável autorizar terceiros, não está correto", afirma Marina Poniwas, do CFP (Conselho Federal de Psicologia) e vice-presidente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

Já Reginaldo Alves Júnior, psicólogo jurídico do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, considera a metodologia adequada. Segundo ele, o argumento de que tal situação fere o sigilo profissional é levantado por psicólogos clínicos. "O profissional que atua no sistema de Justiça pode fazer suas avaliações e informar a autoridade competente."

A discussão ganhou força depois de 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) sancionou lei que regulamenta a escuta de crianças vítimas de violência.

Segundo o texto, o depoimento especial é realizado pela autoridade policial ou judiciária uma única vez como produção antecipada de provas. O dispositivo também diz que o procedimento deve ser feito em local que garanta acolhimento e privacidade.

Especialistas que ajudaram em sua elaboração defendem que a lei visa acelerar investigações e facilitar a responsabilização. Além disso, a gravação da conversa entre a criança e o psicólogo e a intermediação de autoridade policial ou jurídica pode diminuir a chance de que a vítima tenha que ser ouvida mais de uma vez. Caso o promotor ou o juiz queira saber a versão da criança, pode assistir ao vídeo da interação.

Sala de depoimento do complexo de escuta protegida de Vitória da Conquista, na Bahia
Sala de depoimento do complexo de escuta protegida de Vitória da Conquista, na Bahia - SECOM/PMVC

Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil e um dos articuladores da legislação, afirma que, quando o psicólogo participa do depoimento, não exerce a profissão de origem, mas a de entrevistador forense. Assim, diz, não cabe falar em sigilo profissional.

Mas o CFP (Conselho Federal de Psicologia) não entende assim. Em 2010, sete anos antes da promulgação da lei, a entidade proibiu os profissionais de exercerem o papel de inquiridor no atendimento desses casos. A Justiça Federal suspendeu a medida três anos depois e exigiu sua revogação em 2020.

Desde então, o CFP apenas recomenda que os profissionais não exerçam a função. Para a entidade, o correto é ouvir a criança por várias sessões e, a partir disso, formular um laudo técnico que subsidie a Justiça. Esse é procedimento feito por Poniwas, que também é psicóloga do Tribunal de Justiça do Paraná.

"Cabe à psicologia prestar atendimento, acolhimento, prevenção e proteção em casos de situação de violência sexual. Mas não cabe à psicologia se preocupar com a verdade processual dos fatos. Isso é tarefa do direito."

"Quando você envia um laudo psicológico para o juiz dizendo o que aconteceu, você não está dando voz à criança. Então, os resultados de responsabilização são pífios", rebate Itamar Gonçalves, da Childhood.

Estudo feito pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul neste ano apontou que, em 79% dos depoimentos especiais, as crianças confirmam que a violência ocorreu da mesma forma apontada por quem denunciou o caso à polícia, o que ajuda na responsabilização do acusado. O levantamento considera apenas as audiências ocorridas no estado em 2022.

O depoimento especial pode ser feito tanto no fórum de Justiça quanto na delegacia.

Em meio ao impasse, Gonçalves defende que, se necessário, os psicólogos sejam substituídos por pedagogos e assistentes sociais. Essas duas profissões já atuam no depoimento especial em vários estados. De acordo com o estudo do TJRS, por exemplo, mais de 70% dos entrevistadores do tribunal são assistentes sociais, contra 23% de psicólogos.

A lei de 2017 não define qual categoria deve exercer a função de entrevistador forense.

No Mato Grosso do Sul, onde Sophia de Jesus Ocampo, de 2 anos e 7 meses, morreu em janeiro depois de ser agredida e estuprada, a Secretaria de Segurança Pública determinou, em março, que policiais atuarão como entrevistadores nos depoimentos especiais.

"Infelizmente, o número de crianças vítimas desses casos aumentou muito durante a pandemia, o que causou um gargalo imenso nas delegacias e no Judiciário", afirma a juíza Kelly Gaspar Duarte Neves, coordenadora pedagógica da Escola Judicial de Mato Grosso do Sul.

Cerca de 400 policiais participarão de um curso de 48 horas, sendo 40 remotas e 8 práticas. A grade, segundo Neves, é formulada com base no protocolo brasileiro de entrevista forense, que Gonçalves e Alves Júnior ajudaram a formular. O documento, aliás, orienta o profissional a avisar à criança que a conversa está sendo gravada –mas na prática, segundo especialistas ouvidos pela Folha, nem sempre isso acontece.

A medida gerou alerta de especialistas. "Pelo amor de Deus, a criança se sente muito mal diante de policiais e autoridades em geral. Ela precisa de um adulto que seja sensível e que queira escutar e ler seu sofrimento", diz Eliana Caligiuri, psicanalista e autora de um artigo publicado sobre o tema.

Alves Júnior também observa: "Pode ser que um policial tenha sensibilidade para conversar com essa criança e seja treinado para falar sobre a dinâmica da violência. Por outro lado, um profissional da área da saúde mental está dotado de mais treinamento para poder observar de que forma o trauma interfere na fala da criança. Um policial pode não ter esse manejo."

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