Falhas na formação profissional prejudicam atendimento de crianças vítimas de violência sexual

Assunto deve ser incluído de forma obrigatória nas faculdades e em capacitações, segundo especialistas

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São Paulo

Poucos estudantes de direito e de cursos nas áreas da saúde e da educação são preparados para lidar com crianças e adolescentes vitimados pela violência sexual. A falha começa na graduação, com a abordagem superficial ou apenas técnica do tema, e persiste com a falta de capacitação dos profissionais.

Com mediação da jornalista Cris Guterres, as lacunas foram discutidas na primeira mesa do seminário Violência Sexual Infantil. O evento foi realizado pela Folha com apoio do Instituto Liberta em 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em São Paulo.

Para Renata Rivitti, promotora de Justiça no MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo), uma das principais falhas na formação jurídica é a ausência do direito infantojuvenil como matéria obrigatória na graduação.

Foto mostra palco de um teatro com quatro mulheres sentadas, sendo uma mediadora e três debatedores; o fundo da cena anuncia o seminário Violência Sexual Infantil
Da esq. para a dir., Cris Guterres (mediadora), Márcia Bonifácio, Renata di Sessa e Renata Rivitti durante evento realizado no teatro do Unibes Cultural, na zona oeste de São Paulo - Jardiel Carvalho/Folhapress

Hoje, a disciplina costuma ser incluída como eletiva, mas o conteúdo fica aquém do necessário para desenvolver olhar ampliado sobre a associação entre relações familiares e violações dos direitos de crianças e adolescentes, disse.

Também falta adesão à educação continuada. "Fazemos eventos sobre violências e direitos infantojuvenis, mas quem mais precisa estar não se interessa e não temos meios, infelizmente, de obrigar."

Outra barreira, segundo a promotora, é a desintegração entre as áreas jurídicas, que dificulta a definição de prioridades no atendimento.

Isso significa que as varas envolvidas —de infância, de família e criminal, por exemplo— não atuam com coesão. Uma formação conjunta permitiria um trabalho mais coordenado dessas frentes.

Na saúde, o tema surge no contato dos estudantes com a pediatria e a ginecologia, mas a abordagem se concentra na percepção de indícios físicos, disse Renata Di Sessa, médica especializada em sexualidade humana pela Faculdade de Medicina da USP, com experiência na urgência do Hospital Pérola Byington.


Veja os debates da sexta edição do seminário Violência Sexual Infantil:


"Ser capaz de identificar os sinais não é buscar hematomas, mas fatores que estão escondidos. Além da técnica, o profissional precisa ter formação na comunicação, na empatia e no acolhimento."

De um lado, hospitais especializados têm fluxo estabelecido de atendimento, enquanto outros não têm protocolo definido e podem encaminhar para centros de referência do SUS ou executar apenas os procedimentos técnicos de medicação sem acolhimento.

Uma das soluções seria oferecer capacitação a todos profissionais de prontos-socorros, inclusive no setor de recepção, para aprimorar o atendimento e a indicação aos outros serviços da rede de proteção, afirmou Di Sessa.

Já na área da educação, as escolas são fundamentais para que as crianças e os adolescentes percebam quando são vítimas, visto que a violência sexual nem sempre está atrelada à agressão física, disse Márcia Bonifácio, coordenadora do Naapa (Núcleo de Apoio e Acompanhamento à Aprendizagem), órgão da Prefeitura de São Paulo.

O funcionamento do colégio como ambiente de proteção depende do preparo dos educadores, mas o desenvolvimento humano é pouco discutido nas licenciaturas, disse.

"O currículo deve contemplar as múltiplas dimensões da criança —afetiva, cognitiva e biológica—, e o professor precisa ter condições de pensar no aluno sob a perspectiva do desenvolvimento, pois assim é possível ver pontos de alerta no comportamento."

Bonifácio avalia que, para que a escola atue de maneira preventiva na garantia de direitos, também é preciso envolver a comunidade para fazê-la compreender a importância de abordar em sala temas que ainda são vistos como tabu, como direitos sexuais e reprodutivos.

Mesmo que a comunidade e os profissionais de educação desenvolvam um olhar multifatorial e sejam orientados sobre o que fazer, é fundamental que o trabalho de proteção realizado pela escola seja amparado pelo sistema.

Profissionais relatam medo de denunciar casos de abuso

"Ouvimos escolas nomearem o medo que têm de denunciar. Se desejamos qualificar profissionais para identificar, acolher e adotar os procedimentos necessários para que a violência cesse, precisamos garantir que a rede de proteção funcione", disse Bonifácio.

As falhas de atuação da Justiça geram receio entre quem trabalha nas instituições de ensino e de saúde, afirmou Rivitti, promotora. "Não tem profissional de saúde, de assistência, do Conselho Tutelar ou de educação que não tenha medo de assinar um relatório, porque vai ser chamado como testemunha e exposto na comunidade e pode sofrer represália."

Para ela, é preciso pensar no mapeamento de rede, no fluxo de pessoas e de documentos, na tramitação de informações e no papel de cada instituição para reduzir o temor de ter um problema e não saber o que fazer.

Para eliminar o medo, o caminho é despersonalizar a queixa. "A denúncia deve ser um ato institucional. É a escola que deve proteger o estudante. Precisamos de mecanismos e dispositivos que deem para os educadores a segurança de que não é a pessoa que faz a denúncia, mas, sim, a instituição", afirmou Bonifácio.

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