Proteção de crianças contra abusos depende de educação sexual sem tabu

Convidadas de seminário da Folha defenderam aprendizado sobre conhecimentos corporais e relações conforme a idade

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São Paulo

Embora o termo leve à associação mais óbvia, a educação sexual vai muito além de ensinar crianças sobre sexo. É um processo de aprendizado em etapas, de acordo com a faixa etária, que deve abordar emoções, consentimento, limites corporais e outras questões que não se restringem às sexuais.

No Brasil, ensinar as crianças a reconhecer abusos e a denunciar é fundamental, diante de um cenário em que 76,5% dos casos de estupro infantil acontecem dentro de casa.

O dado é do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e foi citado pelas convidadas do segundo painel do seminário Violência Sexual Infantil, realizado no último dia 18, em São Paulo. O evento acontece desde 2017, com organização da Folha em parceria com o Instituto Liberta.

Palco do seminário Violência Sexual Infantil tem banner colorido e uma mulher traduzindo as falas em Libras. Ao lado dela, em quatro cadeiras alinhadas, com duas pequenas mesas entre elas, estão Gabriel Chalita e as convidadas Caroline Arcari, Elisa Bracher e Mariana Motta
A segunda mesa do seminário contou com Caroline Arcari, Elisa Bracher e Mariana Motta e teve a mediação de Gabriel Chalita, ex-secretário municipal e estadual de Educação - Jardiel Carvalho/Folhapress

Na mesa, estiveram Caroline Arcari, autora do livro infantil "Pipo e Fifi" e pedagoga, Elisa Bracher, artista plástica e diretora do ateliescola Acaia, e Mariana Motta, psicóloga e orientadora da Escola Americana de Campinas. O debate teve a mediação de Gabriel Chalita, advogado, professor e ex-secretário municipal e estadual de Educação.

As especialistas defenderam a superação do tabu em torno da educação sexual e da própria violência sexual infantil. O livro de Arcari, por exemplo, propõe explicar de maneira simples conceitos básicos sobre o corpo para crianças a partir de quatro anos, além de indicar caminhos até adultos que são de confiança.

Para a pedagoga, um caminho muito comum na sociedade é responder dúvidas de crianças, que são naturalmente questionadoras, falando de uma criança imaginária, que não tem sexualidade.

"Vivemos uma ditadura do silêncio em relação à sexualidade", afirmou, acrescentando que é preciso falar da criança real. "Usamos muito termos relacionados à ideia de proteger a pureza das crianças, colocando-as como ‘anjos’. Só que anjo não precisa de política pública."

Segundo ela, a abordagem que ensina sobre abuso não deve estar restrita à ideia de dor, machucados ou medo. "Para um abusador conseguir agir por tantos anos, ele não necessariamente causa dor. Ele pode tocar na criança de modo gentil para que ela sinta prazer."

O que se deve ensinar é a diferença entre um toque violador e um de afeto, e não entre toque ruim e bom, porque um toque de abuso pode não ser ruim no entendimento infantil.

Foi dentro de casa, aos 11, que Bracher foi abusada por um empregado durante três anos. A artista contou sobre a violência na serie Infâncias Despedaçadas, criada em 2022 para divulgar casos de estupro contra crianças.

No ateliescola dirigido por ela, há diferentes estratégias de prevenção, que vão de oficinas com psicólogos a aulas sobre como se livrar de possíveis abusos. A instituição atende 240 crianças e adolescentes de duas comunidades da zona oeste de São Paulo, da educação infantil ao fundamental 2.

"No ateliê, as crianças são levadas a expressar, desde muito pequenas, o que incomoda e o que não incomoda e a falar sobre o corpo", explicou Bracher. "Assim, criamos um espaço de confiança, e não é difícil que a criança chegue até nós e diga que tem um problema em casa ou na rua." Recentemente, uma aluna relatou ter se trancado no banheiro de casa e ligado para a avó após o cunhado a ter atacado enquanto dormia.

Movimento semelhante acontece na Escola Americana de Campinas, instituição internacional que tem 850 estudantes, da educação infantil ao ensino médio. Motta contou que, depois do início das aulas de educação sexual —incluídas no programa chamado proteção infantil— houve aumento dos relatos compartilhados com as psicólogas. "A porta se abriu. Agora eles sabem que ali é um lugar seguro", disse.

A instituição realiza anualmente um treinamento com todos os funcionários. "Dentro de uma escola, todo mundo que tem contato com a criança precisa saber como identificar sinais e lidar com possíveis casos, porque qualquer um pode ser eleito como confidente."

O aumento dos números é visto com otimismo pelas especialistas, porque indica que mais denúncias estão sendo feitas e não reflete necessariamente um aumento dos abusos —ainda muito subnotificados.

Por outro lado, Bracher também chamou a atenção para a importância de programas de prevenção não alimentarem a ideia de que todo toque é agressivo. "É um perigo muito grande [para o desenvolvimento], cercear as crianças nos toques que elas podem ter e fazê-las interpretar tudo como um risco, por medo de que um abuso aconteça."

As participantes concordaram que um bom planejamento de educação sexual deve considerar a faixa etária. "Eu dou aula para crianças pequenas. Eu não falo sobre como se fazem os bebês ou sobre métodos contraceptivos, ainda", disse Motta. "Eu falo de sentimentos, emoções, consentimento, respeito, relacionamento, limites corporais, pessoas de proteção."

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