Igreja Católica em Portugal não deu resposta contundente a casos de abuso sexual, diz socióloga

Para Ana Nunes de Almeida, vice-presidente de comissão de investigação, proteção da criança é estruturante da sociedade

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Lisboa

A Igreja Católica em Portugal poderia ter dado uma resposta mais forte e contundente às vítimas de abusos sexuais após o lançamento de um relatório que revelou que pelo menos 4.815 crianças foram vítimas de membros da instituição entre 1950 e 2022.

A visão é da vice-presidente da comissão independente de investigação, a socióloga Ana Nunes de Almeida, 66.

"Quem pede um relatório sobre esse assunto já sabe que os resultados vão ser o que são. Não vale a pena ter ilusões", afirma a pesquisadora, que é coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O documento foi encomendado por decisão da própria Conferência Episcopal Portuguesa em novembro de 2021 e publicado em fevereiro deste ano.

A cúpula da Igreja no país inicialmente não anunciou planos de indenizar as pessoas abusadas, afirmando que pagamentos só seriam feitos por determinação da Justiça. Em meio às pesadas críticas à decisão, a instituição já adotou um discurso mais aberto às compensações.

Ana Nunes de Almeida, socióloga e coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa , fotografada junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Ana Nunes de Almeida, socióloga e coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, fotografada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. - João Cortesão/Correio da Manhã

Horas após a divulgação do documento, o presidente da Conferência Episcopal de Portugal, bispo José Ornelas, pediu perdão às vítimas. "Os abusos de menores são crimes hediondos. Quem os comete tem de assumir as consequências dos seus atos e as responsabilidades civis, criminais e morais daí decorrentes."

O trabalho da comissão, presidida pelo psiquiatra Pedro Strech, validou os testemunhos de 512 vítimas, que apontaram a existência de uma rede de abusos e de ocultações. Os casos aconteceram em seminários, sacristias, colégios internos e casas de acolhimento. Cerca de 96% dos abusadores são homens —77%, padres.

"O nível de sofrimento, de malignidade, de monstruosidade e de perversidade desses abusos é qualquer coisa inimaginável para uma pessoa que nunca ouviu o testemunho de uma vítima. Foi devastador", afirma.

A comissão teve total independência para trabalhar? Não houve nenhuma interferência no nosso trabalho. Tínhamos um espaço próprio para receber as vítimas, ofereceram-nos todas as condições. Depois houve resistências de alguns bispos em particular, mas que não puseram em causa a nossa independência. O fato de ter havido resistência é porque estávamos fazendo aquilo que queríamos.

Como o relatório foi elaborado? Fizemos uma opção metodológica de fundo, que era fazer da narrativa da vítima o foco. Todo modelo da análise foi construído em torno daquilo que ela poderia contar sobre a experiência. Por isso demos o nome de "Dar Voz ao Silêncio".

Colocamos para funcionar uma estrutura com várias formas das vítimas chegarem até nós, através de um questionário online, de um número de telefone, de entrevistas presenciais e de uma caixa postal.

A informação foi recolhida e tratada. O questionário tinha perguntas fechadas e abertas, onde as vítimas podiam descrever aquilo que entendessem sobre o abuso e outras questões.

A abordagem cruzou elementos quantitativos e qualitativos, mas o nosso relatório é todo baseado na palavra das vítimas e colocou, digamos, os abusadores em segundo plano.

Não é sobre abusadores, embora, através de perguntas abertas, nós tenhamos captado a narrativa dos abusadores.

Qual foi a recepção do relatório dentro da Igreja? Depois da apresentação, fomos a Fátima, para esclarecer dúvidas, mas não sei dizer se, no interior da Igreja, tem havido discussões ou debates.

Há grupos católicos que têm trabalhado sobre o relatório. Agora, feedback para além dos agradecimentos e das palavras do bispo José Ornelas e de outros não sei responder.

Na avaliação da senhora, a Igreja Católica em Portugal poderia ter dado uma resposta mais explícita e contundente após a divulgação dos resultados, a exemplo do que aconteceu na França [no país, a instituição concordou em vender bens e imóveis para custear indenizações de vítimas de abuso]? Sim, poderia ter havido uma resposta mais explícita, mais consistente, mais pensada. A Igreja teve um ano para se preparar. Quem pede um relatório sobre esse assunto já sabe que os resultados vão ser o que são. Não vale a pena ter ilusões.

Surpreendeu-me que, com tanto tempo de preparação e um mês depois de terem recebido o relatório, não tivesse havido uma resposta mais coesa, mais estratégica, mais contundente. Nós vemos respostas pontuais, dispersas.

Por outro lado, também não vimos força nas respostas pela negativa ao relatório.

O relatório fala em mais de 4.800 crianças abusadas entre 1950 e 2022. Por que a comissão considera esses números a "ponta do iceberg", como dito durante o lançamento? Fizemos uma estimativa completamente conservadora. O número de 4.800 não é uma estimativa do número de crianças que foram abusadas entre 1950 e 2022. Nós não tínhamos uma amostra representativa e, por isso, não podíamos fazer extrapolações para o universo.

Aquelas 4.800 crianças foram encontradas a partir da nossa base de dados. Montamos a rede de crianças abusadas que eram do conhecimento das 512 vítimas que testemunharam à comissão. A cada relato, era como se puxássemos um fio, que revelava uma rede de outros casos.

Como os abusos eram ocultados? A ocultação faz parte do quadro do abuso sexual. Era uma ocultação de várias dimensões, a começar pelas próprias vítimas, que muitas vezes têm vergonha e medo, porque sentem que o abusador circula livremente num espaço de poder.

A pessoa abusadora em geral tem grande influência. Na maior parte dos casos, não são monstros. São pessoas simpáticas, que brincam com as crianças, que ajudam nos deveres escolares.

A criança oculta porque tem medo e sente culpa. Muitas vezes o abusador diz que elas são muito bonitas, são escolhidas por Deus. A vítima se perguntava por que não era capaz de fugir, por que não disse não.

É claro que ela não conseguia [dizer não], porque era uma relação de poder. É o poder de um adulto sobre uma criança, mas não um adulto qualquer, um que tem ascendente espiritual sobre a criança. Em famílias muito católicas, um padre não é uma pessoa qualquer. Há um enorme respeito.

E a ocultação na Igreja? Muitas famílias não acreditavam nas crianças. Houve crianças que foram insultadas e completamente desacreditadas. Já outras acreditaram e denunciaram, mas, na maior parte das vezes, não houve efeito.

E a Igreja oculta. Não dava importância. Se temia que houvesse ruído social [sobre um caso], a estratégia era mudar o padre da paróquia.

Quais as principais recomendações do relatório? A primeira, que se dirige tanto à Igreja quanto à sociedade civil, é uma mudança de paradigma sobre a proteção da criança, que precisa ser absolutamente garantida como algo que é estruturante da sociedade democrática.

A questão do clericalismo é fortíssima e muito negativa na Igreja. A ideia de que os sacerdotes são eleitos, que têm poder sobre aquilo que os outros fazem, que se situam numa cadeia hierárquica como chefes e não como irmãos dos crentes é negativa. A defesa de suas posições de poder e da reputação da Igreja, tal como eles entendem, coloca os interesses da instituição à frente do sofrimento das vítimas.

Também consideramos muito importante a criação de uma comissão independente que faça o acompanhamento dos casos de abuso sexual.

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