Descrição de chapéu Causas do Ano

'Só a informação protege as crianças da violência sexual', diz Luciana Temer

Prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes é a Causa do Ano no Folha Social+

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São Paulo

Na última semana, quando viajava para participar de um seminário no Pará, Luciana Temer foi abordada pela passageira a seu lado no avião. Depois de conversar amenidades, ao saber que Luciana é presidente de uma organização que combate a violência sexual contra crianças e adolescentes, a desconhecida contou sua própria história: aos 11 anos, foi estuprada pelo padrinho de seu irmão, um coronel muito conhecido na cidade; sua mãe não acreditou nela e o crime —que ocorreu mais de uma vez— ficou impune.

Desde que se tornou a voz que representa o Instituto Liberta na divulgação da causa, a ativista escuta constantemente casos parecidos. "Acontece direto. Todo mundo tem uma história para contar", diz.

Sua percepção é corroborada pelas estatísticas: a cada hora, quatro meninas com menos de 13 anos são estupradas no Brasil. São elas as vítimas mais frequentes desse tipo de crime (61% dos casos); 86% dos agressores são conhecidos das vítimas.

Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta, que combate a violência sexual contra crianças e adolescentes - Karime Xavier/Folhapress

Após criar campanhas incentivando denúncias e o acolhimento às vítimas, o instituto deslocou a atenção para um aspecto menos discutido: a prevenção. "Por que a sociedade foca no crime depois que ele acontece?", questiona Luciana. "Nosso caminho tem que ser outro. Não podemos deixar isso acontecer. E o que protege a criança é a informação."

A prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes é a segunda das Causas do Ano, um canal da plataforma Social+. Com o apoio do Instituto Liberta, uma série de produtos editoriais sobre a temática ganharão visibilidade na Folha nos próximos três meses.

Segundo Luciana Temer, a grande quantidade de casos e a baixa taxa de denúncias mostram que esse tipo de violência, por mais que aparentemente desperte ojeriza, é tolerado pela sociedade. Ela clama por uma desnaturalização desses crimes semelhante à que aconteceu com a violência contra a mulher.

"Foi uma visibilidade conquistada pelo movimento feminista. Hoje se conversa sobre isso na mesa do bar de forma natural. Mas se alguém falar em violência sexual infantil, vai ser um silêncio absoluto. Temos um grande problema e o bode está na sala."

Por que um crime tão chocante é também tão comum? Somos uma sociedade historicamente permissiva com essas violências. Temos uma relação de apropriação dos corpos de mulheres e crianças. Além disso, estamos falando de uma violência predominantemente intrafamiliar, que não é praticada por criminosos armados, mas por pessoas próximas à família. Uma coisa é você denunciar o professor de natação, o monitor do acampamento; outra é denunciar seu pai, seu irmão. E o problema é que nosso silêncio autoriza o agressor e perpetua o ciclo da violência.

Você vê um paralelo com a forma como era tratada a violência contra a mulher há alguns anos? Sim. Fui delegada de polícia há 35 anos, quando não tinha lei Maria da Penha, Casa da Mulher Brasileira, lei de importunação sexual. Era feio falar de violência contra a mulher, tanto que nunca registrei um boletim de ocorrência de mulher rica. Hoje se conversa sobre isso na mesa do bar da forma mais natural do mundo, graças à visibilidade conquistada pelo movimento feminista. Mas se alguém mencionar a violência sexual infantil, vai ser um silêncio absoluto. Temos um grande problema e o bode está na sala. Nossa expectativa é colocar essa pauta na sociedade e empoderar as crianças por meio da educação. É a partir desse desconforto social que vêm as políticas públicas.

De que maneira a educação sexual protege a criança? Em casos gravíssimos, como o tráfico de pessoas para exploração sexual, que envolve crime organizado, informar dificilmente vai evitar essa violência. Mas esses casos não são maioria. A violência mais comum é a cotidiana, praticada por alguém próximo, e sabemos que isso pode ser evitado se a criança estiver informada e empoderada para dizer não. Nem toda violência sexual causa dor, e se a criança não souber que aquilo é errado, fica difícil se opor. Temos que informá-las, de maneira adequada a cada idade, para que identifiquem que algo estranho está acontecendo.

É na escola que se deve falar desse assunto? A escola não é o único agente, mas é um espaço importante de proteção. Olha como a sociedade ainda não sabe do que está falando: em maio de 2022, foi sancionada a lei Henry Borel [que protege crianças vítimas de violência doméstica e familiar]. No mesmo mês, a Câmara aprovou a educação domiciliar. Como é que você faz uma lei reconhecendo que a violência contra a criança é intrafamiliar e depois aprova o homeschooling? Onde essa criança vai pedir socorro?

O Brasil precisa de mais leis para enfrentar esse tipo de violência? Toda vez que você fala em violência sexual, um monte de gente vem pedir pena de morte, castração química e outros absurdos. Mas só há punição se as vítimas falarem. Temos um marco legal que contempla a repressão a esse crime, o acolhimento às vítimas e a necessidade de campanhas de prevenção nas escolas como um tema transversal do currículo. O que falta são políticas concretas. Quatro registros de meninas estupradas por hora é um dado inadmissível. E não adianta falar sobre sexualidade com a menina quando ela já está na adolescência, muitas vezes com um bebê no colo. É tarde demais.

Quais são as barreiras encontradas pelas escolas? A verdade é que as escolas não sabem como fazer isso. Temos leis e bons materiais de capacitação, mas a sociedade como um todo foge desse tema. Precisamos construir um consenso social de que isso é necessário, de que falar sobre violência sexual, sobre consentimento e sexualidade saudável não é ensinar os filhos a fazer sexo nem despertar um desejo que não está lá. É ensiná-los a se proteger, a fazer escolhas melhores. A informação é a única coisa que protege porque você não é uma pessoa onipresente. Você não está com seu filho o tempo inteiro.

Por que tantos pais têm medo de que a escola aborde o tema? Eu não tenho dúvida de que todos os medos são por desinformação. O próprio termo "educação sexual" vem carregado de mitos, como se o professor fosse "ensinar meu filho a fazer sexo", quando na verdade estamos falando de prevenção, de preservação. As pessoas precisam saber que países com educação sexual obrigatória têm menos gravidez na adolescência, as meninas começam a vida sexual mais tarde. É a lógica inversa do que se imagina. Paralelamente a isso, temos que capacitar todo o sistema educacional –e isso é perfeitamente possível.

Essa é uma lacuna somente da rede pública de ensino? Eu diria que as escolas particulares enxergam menos ainda este problema. Ainda temos uma visão distorcida de que as violências sexuais acontecem só nas famílias de maior vulnerabilidade social, e isso definitivamente não é verdade.

Os recentes ataques contra escolas têm algum impacto sobre esse tipo de violência? Esses ataques geram nos pais uma sensação de que a escola é um lugar inseguro. O que aconteceu é terrível e tem que ser enfrentado com rigor, mas não dá para a gente desqualificar a escola como espaço de proteção. A violência na escola é infinitamente menor do que a que ocorre em casa.


RAIO-X

Luciana Temer, 53

Advogada, é professora de Direito Constitucional na PUC-SP e diretora presidente do Instituto Liberta. Foi delegada de polícia, secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo e secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do município.


Como denunciar

- O Disque 100, canal de denúncia anônima do governo federal, funciona 24 horas, todos os dias da semana. Basta ligar gratuitamente para o número 100. Também é possível denunciar pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil ou pelo número de WhatsApp (61) 99611-0100.

- A denúncia pode ser feita presencialmente em uma delegacia de polícia, de preferência uma delegacia de proteção à mulher ou de crianças e adolescentes, se houver na sua cidade.

- Os Conselhos Tutelares podem ser procurados para ajudar a tirar uma criança de uma situação de violência, ainda que seja uma suspeita.

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A dimensão do problema

61,3% dos estupros registrados no Brasil são contra menores de 13 anos

4 meninas de menos de 13 anos são estupradas por hora no Brasil

82% dos abusadores são conhecidos da vítima

76,5% dos casos acontecem dentro de casa; 1%, na escola

85,5% das vítimas são do sexo feminino

4 a 8 anos é a faixa etária da maioria dos meninos vítimas de violência sexual

10 a 14 anos é a faixa etária da maioria das meninas vítimas dessa violência

10% dos casos são denunciados, segundo estimativas

3.651 pontos de exploração sexual infantil foram mapeados no Brasil em 2020

Fontes: Anuário Brasileiro de Segurança Pública; Childhood; Instituto Liberta

A causa 'Da Repressão à Prevenção da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes' tem o apoio do Instituto Liberta, parceiro da plataforma Social+.

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