Jovem com paralisia cerebral grave conclui ensino médio e celebra autonomia

Sofia Crispim superou prognóstico médico, rejeição de 20 escolas e passou na 1ª fase da Fuvest aos 17

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São Paulo

Quando Sofia Crispim tinha um ano, os médicos disseram que ela não iria aprender a falar, a ler ou a escrever. Aos quatro, cravaram que ela já tinha se desenvolvido o máximo que poderia e não teria nenhuma autonomia no futuro. Felizmente, a mãe dela, a diretora de marketing Denise Crispim, 44, não acreditou no destino sentenciado para a filha tão precocemente.

Depois de uma saga para que ela pudesse ter acesso a uma educação de qualidade —que incluiu a rejeição por 20 escolas—, hoje, aos 18, Sofia está terminando o ensino médio com ótimas notas e se prepara para tentar o vestibular.

Sofia é uma mulher branca, ela tem cabelos cacheados, usa uma camisa preta com detalhes azuis e uma blusa jeans, veste uma calça preta e está sentada em uma cadeira de rodas
A estudante Sofia Crispim, 18, no colégio em que estuda, em Osasco (SP) - Jardiel Carvalho/ Folhapress

Nascida de um parto prematuro, a adolescente tem paralisia cerebral quadriplégica com distonia e deficiência visual associadas, uma deficiência múltipla que compromete sua locomoção, a qualidade da visão e a área do cérebro responsável pela linguagem. Em uma escala de cinco graus de gravidade, na qual o 5 é para quem não consegue se levantar da cama, o caso dela se enquadra no nível 4.

Sua capacidade cognitiva, porém, foi preservada, e ela não só conseguiu passar por todas as séries escolares como colecionou vitórias acadêmicas pelo caminho. No oitavo ano, obteve o segundo lugar, entre mais de 3.000 estudantes, em um concurso de contos. Quando tentou o Enem no começo do ensino médio, obteve a maior nota entre seus colegas do primeiro ano. No segundo ano, foi aprovada na primeira fase da Fuvest.

Sofia é um exemplo raro em um contexto em que dois em cada três brasileiros com deficiência não concluem o ensino fundamental, apenas 16% terminam o ensino médio e 5%, o nível superior —indicadores que são ainda piores nos casos de deficiência múltipla.

Essa trajetória que contraria as estatísticas exigiu muita luta e persistência de mãe e filha. As dificuldades para matriculá-la na escola começaram já na educação infantil. A Lei Brasileira de Inclusão (de 2015) ainda não existia, e as recusas eram explícitas. "Algumas explicavam que não tinham estrutura arquitetônica, mas outras claramente não queriam ela lá", diz Denise, que procurou várias opções na rede particular.

Uma delas queria cobrar uma "taxa de inclusão" que elevaria a mensalidade para o triplo do preço. Outras exigiram atestados de que a menina nunca teria problemas de saúde ou pedagógicos. A experiência foi tão traumatizante que Denise desistiu de levar Sofia nas visitas, para protegê-la de tantas negativas.

"Uma das escolas tinha uma provinha de admissão. Ela passou, mas, quando eu ia fazer a pré-matrícula, a diretora me ligou e disse: ‘Não quero sua filha aqui. Se você entrar com uma liminar, vou ser obrigada a aceitá-la, mas vou humilhá-la de tantas formas que ela não vai querer ficar’", relata.

Ela acabou sendo bem acolhida por uma escola pequena, a Projeto Parque I, mas não pôde continuar o ensino básico lá porque as aulas só iam até a educação infantil.

Apesar de Sofia ter se alfabetizado aos cinco anos, a passagem para o ensino fundamental foi outro périplo. Após muitas tentativas frustradas, Denise optou por uma escola pública, que não dificultou a matrícula, mas depois foi impondo resistências.

Foi preciso batalhar para que Sofia pudesse levar recursos que ajudariam em seu aprendizado, como folhas brancas, um mapa ampliado ou um iPad. "A regra era não levar material de casa, mas essas coisas o governo não mandava", diz Denise. "Era como se eles estivessem te fazendo uma caridade e por isso você não podia reclamar."

Na mudança para o Fundamental 2, Denise quis poupar o desgaste e contratou uma assessoria para fazer um filtro prévio entre os colégios. Foi escolhida uma unidade da rede COC em Osasco e a família se mudou para o prédio vizinho à escola, evitando assim o estresse do trajeto de carro. Se for preciso, se mudarão novamente de casa quando ela for para a universidade.

Como toda mudança de ciclo, a passagem para o ensino médio foi outro desafio. Sofia tinha cursado o nono ano remotamente devido à pandemia e teve dificuldade em física e química. "Foi péssimo. Odeio aula online", reclama ela, que, por ser de um grupo de alto risco para Covid, demorou a voltar para a modalidade presencial. Denise estava tão aflita para que sua filha se vacinasse que elas percorreram 1.000 km até o Mato Grosso do Sul, o primeiro estado a permitir a imunização para adolescentes com comorbidades.

Ela diz ter sido questionada se sua filha daria conta de acompanhar o ensino médio. "Um professor chegou a perguntar: mas até onde você acha que ela vai? Eu respondi: Até onde os seus outros alunos vão? Você faz essa pergunta para eles?".

Autonomia

Sofia tem uma boa relação com os professores e se vira bem na escola. Conduz sua própria cadeira em terrenos planos, fotografa a lousa para não cansar sua musculatura anotando e usa o celular para escrever por voz. Nos simulados para o Enem, conta com a ajuda de alguém que lê as questões para ela, como acontece na prova oficial.

Ela prestou os vestibulares justamente para se habituar à dinâmica desse tipo de exame adaptado. Não esperava ter um desempenho tão bom. "Fiquei chocada", diz ela, que pensa em cursar direito.

A garota escreve poesias, gosta de ler e já foi monitora dos colegas. Suas disciplinas favoritas são redação, sociologia, filosofia e gramática. "Pasmem, eu gosto de gramática. Sou de humanas nesse nível", brinca.

Apesar de reclamar, como quase todo adolescente, da rotina puxada do 3º ano, ela é uma aluna aplicada, do tipo que abre a câmera nas aulas virtuais e faz o dever de casa sem que a mãe precise pedir. "Para mim, a escola é mais do que o lugar para aprender português ou matemática. É onde a gente aprende a ser o melhor da gente", define. "Os professores despertam essa vontade de crescer, de fazer o futuro que a gente quer."

Ao longo da vida escolar, Sofia sofreu poucas vezes discriminação declarada por parte dos colegas. O que acontecia era ela não ser chamada para festas de aniversário ou excursões para lugares pouco acessíveis, por exemplo. O encerramento do ensino básico, porém, está sendo bem diferente. Sua turma fez questão de procurar um lugar completamente acessível para a festa de formatura —um local sem escadas na entrega dos diplomas, no qual ela possa entrar pela porta da frente, sem improvisos nem a necessidade de "dar um jeitinho" para que ela participe de tudo.

Recusa velada

Segundo Denise, pessoas com deficiência são exigidas a provar sua capacidade o tempo todo. "Acho muito injusto que elas tenham dificuldade para acessar algo tão básico quanto a educação, que é o que traz uma chance de autonomia, de ter uma profissão."

Apesar da forte exclusão educacional desses brasileiros, dados do Censo Escolar mostram um gradativo aumento de matrículas de estudantes com deficiência, chegando a 1,5 milhão em 2022 --mais de 90% deles incluídos em classes comuns. Pela Lei da Inclusão, escolas públicas ou privadas que recusarem esses alunos ou cobrarem valores adicionais podem ser punidos com reclusão de 2 a 5 anos e multa. Se a vítima tiver menos de 18 anos, a pena é agravada.

Mesmo assim, há escolas que recusam esses alunos, ainda que de forma sutil, diz Denise. "O que falta é o que chamamos de acessibilidade atitudinal, que é você ver no outro mais capacidades do que dificuldades. Não adianta você se propor a educar e dizer: ‘Só educo o ser humano do tipo A’. Todo aluno vai ter suas demandas, uma deficiência é só um jeito de existir no mundo."

Ela nunca quis que a filha fosse para uma escola especial por ser "um ambiente de cuidado e não de aprendizagem". Na pandemia, chegou a pensar em homeschooling por "total desespero", mas desistiu.

Anos depois de ouvir que estava gastando dinheiro e energia à toa ao investir no desenvolvimento da filha, ela se orgulha da trajetória de Sofia, mas diz estar consciente de que seu caso é exceção. "A meritocracia é um discurso perigoso, porque dá a entender que quem é bom de verdade chega lá. Muitos bons de verdade se cansam. Quantos pais têm condição de buscar 20 escolas, de se mudar de casa? Muita gente boa se perde no caminho, e o custo social disso é alto."

Sofia, por sua vez, acredita que seu exemplo pode inspirar outras pessoas com deficiência, mas esse não é seu foco. "Só quero viver minha vida normalmente."

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