'Em reuniões, tenho certeza de que minha voz tem que ser ouvida', diz brasileira CEO do Bumble

Lidiane Jones fala de desafios de ser mulher na área de tecnologia e comandar gigante de app de relacionamento

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São Paulo

Aos 18 anos, Lidiane Jones deixou a zona leste de São Paulo para estudar ciências da computação em Michigan, nos Estados Unidos. Com um inglês fraco, segundo admite hoje, desgosto pelo frio e pela comida local, resistiu. Seu plano era voltar ao Brasil formada.

Vinte seis anos depois, ela vive o resultado da mudança de ideia que teve com o tempo. Adiou o retorno ao país e, em 2024, assumirá pela segunda vez um cargo de CEO (diretora-executiva) em uma empresa de tecnologia com valor bilionário nos EUA.

Lidiane Jones, futura CEO do Bumble, sentada em uma cadeira com uma parede azul ao fundo.
Lidiane Jones, futura CEO do Bumble - Slack/Divulgação

Jones trocará, em 2 de janeiro, o Slack pelo Bumble, empresa de aplicativo de relacionamentos. Chega em um cenário que não é dos mais favoráveis para o setor.

Assim como seus concorrentes, a companhia teve queda nas ações —40% em 2023 e mais de 70% desde 2021— enquanto navega em um mercado visto por analistas como saturado. "Quem conhece a minha história sabe que isso não me assusta", afirma Jones à Folha.

A brasileira vai substituir a fundadora do Bumble, Wolfe Herd, 34. Rival do Tinder, a plataforma se diferencia por dar poder às usuárias. Só elas podem iniciar as conversas no app no momento seguinte ao "match".

Jones diz que esse ambiente empoderador para as mulheres pesou na sua decisão de aceitar o convite. Caso raro de uma CEO em empresas de tecnologia, ela conta que teve de lidar ao longo da carreira com preconceito e "mansplanning" —quando um homem explica para uma mulher coisas óbvias, inclusive assuntos que ela domina.

"Sempre tem [algum preconceito], mas o que eu aprendi com os anos é o seguinte: eu sempre vou ser ouvida", afirma. "Eu tive de pegar isso rápido, ter resistência e convicção, falar com firmeza as coisas que são importantes."

A sra. assumirá o Bumble no lugar da fundadora da empresa. Como vê esse desafio?
Foi assim também no Slack, mas no Bumble tem uma diferença. O que Wolfe Herd [fundadora e atual CEO] fez até agora é muito inovador. Ela foi pioneira no movimento de dar poderes para as mulheres na relação.

Criou o app em que são elas que puxam o assunto primeiro. O que fez foi um ato de igualdade, não só feminista. Isso me levou a aceitar o convite.

Tem uma conexão minha muito grande com a filosofia de empresa. Só vejo pontos positivos em assumir a posição que foi dela.

Como é chegar em um momento em que o mercado de aplicativos de namoro tem sido mal avaliado por investidores?
É desafiador, mas o Bumble teve bons números em 2023, com mais usuários. Em tecnologia, o que possibilita crescimento é a inovação em produtos.

Evoluímos para sermos um aplicativo que não é apenas para namoro. Uma grande parte do nosso público está lá para encontrar amigos e temos a opção também de encontros profissionais. Nosso objetivo é conexão.

Mas o boom registrado nos anos anteriores no mercado de apps parece não se repetir ao mesmo tempo em que eventos presenciais ganham força.
Isso não é um problema para a gente. Nosso objetivo final é que um encontro presencial aconteça entre quem se conectou na plataforma. Esse é o nosso sucesso.

Há indícios de saturação no mercado, segundo relatório do Morgan Stanley. Ações do Bumble caíram mais de 40% em 2023 e mais de 70% desde o IPO [oferta de ações], em 2021.
Somos uma empresa de capital aberto e é normal que os investidores estejam preocupados com crescimento. É isso que vamos entregar. Quem conhece a minha história sabe que não vou ter medo ou perder meu sono com cenários desafiadores.

Os aplicativos têm sido usados para golpes. Qual a responsabilidade da empresa nesses casos?
Essa é uma questão muita cara para o Bumble. Estou chegando agora, mas sei que a empresa tem a segurança dos seus usuários como um dos seus valores. Desde a sua criação, o Bumble foi pioneiro em ações para dar segurança, principalmente às mulheres.

Nos EUA e na Europa, as legislações para criminalizar fraudes foram definidas por ações nossas, que seguirão como prioritárias.

A sra. fez a sua carreira nos EUA, em empresas globais. Como foi seu início no Brasil?
Eu cresci na zona leste de São Paulo, em uma família muito humilde. Meu pai e minha mãe emigraram da Bahia. Minha mãe limpava casas, e meu pai trabalhava em empresas pequenas.

Quando você cresce em um ambiente assim, tem que ser mais flexível sempre para aprender e aproveitar oportunidades quando elas vêm. Eu estava no colegial [hoje ensino médio] e consegui um estágio em uma empresa que era afiliada da Ford.

Conheci cargos e profissões que eu nem imaginava que existiam. Aquilo despertou uma curiosidade e uma vontade de crescer.

Pessoas perguntavam por que eu não ia estudar fora do país. Eu era uma adolescente sem dinheiro, sem falar inglês, sem nada. Não tinha nem pensado em fazer faculdade. Comecei a estudar inglês sozinha, ouvindo música, lendo e treinando no trabalho. Juntei um dinheiro e fui passar um mês na Califórnia.

Desde então, nunca mais voltou para morar no Brasil?
Voltei, sim. Isso foi um período de estudos. Continuei na empresa em São Paulo e comecei a pesquisar sobre o que precisava fazer para estudar fora. Consegui uma bolsa, mas não passei no exame de inglês de primeira. Fiz outra vez e deu certo. Fui para Michigan fazer a graduação.

Eu prestei vestibular em São Paulo também, mas o que me fez vir [para os EUA] foi viver um ambiente em que a tecnologia estava se desenvolvendo. Avaliei que no Brasil eu trabalharia em TI, na tecnologia de outros setores. Eu queria era estar onde a tecnologia é criada. Isso até mudou, hoje você tem inovação no Brasil e em outros centros, o que é incrível. Mas não era assim naquela época.

Eu vim e o início foi horrível. A comida era muito ruim em Michigan, um frio. Eu não sabia falar inglês necessário. Aprendi, criei resistência e me adaptei.

Meu plano sempre foi voltar em algum momento. Na faculdade, fiz estágios em empresas que tinham operação no Brasil. Trabalhei na Pfizer e depois consegui entrar na Apple.

Decidi postergar o retorno, foi passando e fiquei. Não era minha intenção estar aqui para sempre. Mas eu conheci o meu marido, aí minha mãe desistiu, viu que eu não ia mais voltar [risos].

A sra. é um caso raro por ser brasileira e mulher que ocupa cargo de chefia em empresa de tecnologia. Como foi crescer nesse mercado, teve de lidar com preconceito?
Se eu falasse que na minha carreira inteira eu não passei por nada disso, você provavelmente não acreditaria em mim. Sempre tem [algum preconceito], mas o que eu aprendi com os anos é o seguinte: eu sempre vou ser ouvida.

Eu não sou uma pessoa que fala muito alto, que grita, que perde a compostura. Sou mais analítica, mas independentemente de quem esteja na reunião, no grupo onde eu estiver, a minha voz vai ser ouvida

Lidiane Jones

nova CEO do Bumble

Acho que é importante não perder essa perspectiva. Eu tive de aprender isso rápido, ter resistência e convicção, falar com firmeza as coisas que são importantes.

Vejo que para a mulher, em um ambiente em que está em minoria, acontece de ela começar a se julgar na própria cabeça se sabe ou não sabe alguma coisa que domina. Eu aprendi que é mais fácil falar do que ficar escutando todo mundo falar alguma coisa que não sabe. Ouço, mas me censuro menos. Isso tem ajudado muito.

Quando tem qualquer tipo de "mansplaining" em reuniões, eu tenho certeza de que a minha voz tem que ser ouvida.

A sra. está no cargo de CEO do Slack, empresa de serviços de mensagens, neste ano. Assim como outras empresas de tecnologia, fez demissões. Acredita que os cortes seguirão no setor?
O mercado inteiro de tecnologia tem sofrido um ano difícil. Tivemos isso no Slack no início do ano e depois não houve mais. Não trabalhava com previsão, no curto prazo, de cortes adicionais.

Tem o impacto da inteligência artificial, muitas funções deixarão de existir, sim?
Eu acho que a oportunidade com a inteligência artificial generativa não vai ser de cortes de emprego, mas de crescimento de vagas. A minha visão é muito otimista.

Ela vai facilitar o trabalho dos funcionários, vai ajudá-los a terem mais tempo para as coisas que as pessoas realmente querem fazer, né? Que é ter mais criatividade, poder utilizar o tempo com estratégia, em conexões com os clientes, com os colegas de trabalho.

Se você olhar os avanços anteriores de tecnologia, da internet, do robô, por exemplo, o que a gente viu foi mais investimento para acelerar a inovação e novas funções sendo criadas.

E para quem vai trabalhar nesse novo cenário, nessas novas funções com IA, o que a sra. vê como atributos importantes?
Acredito que tem algumas coisas que serão ainda mais importantes para o trabalho. Uma é poder pensar criticamente.

Explico: com a tecnologia e com a inteligência artificial generativa, você vai precisar de pensamento crítico para decidir se confia na informação que está recebendo, para avaliar realmente se ela tem os fins corretos. Ter essa análise crítica é muito importante.

A segunda coisa é ter muita flexibilidade. Na minha carreira inteira, sempre vi as coisas mudarem mais do que eu pensava que mudariam. Você começa em um cargo e tudo está completamente diferente do que você imaginou no primeiro dia, na primeira semana.

Ser flexível para aprender, ter curiosidade de tentar entender qual o problema que você está resolvendo, ter a mente aberta e saber que você vai aprender a vida toda é muito importante.

Quais oportunidades o Brasil pode ter nesse cenário de evolução da IA?
Olha, a parte mais interessante da inteligência artificial generativa é que tem um desenvolvimento muito rápido de open source (código aberto).

É algo descentralizado, com acesso para desenvolvedores em todos os lugares. Isso cria uma oportunidade muito grande de inovação no mundo inteiro. Para o Brasil também.

Tem um jogo aberto, com chances novas. Estamos em um "leveling the playing field" [campo de jogo nivelado], com novas oportunidades e menos vantagens para quem lidera as tecnologias até agora. Empresas e governos devem aproveitar isso.


Lidiane Jones, 44
Paulistana da zona leste, é graduada em ciências da computação pela Universidade de Michigan (EUA). Trabalhou na Apple, Microsoft —onde ficou por 13 anos—, Sonos e Salesforce. Vai assumir o cargo de CEO no Bumble em 2024

Colaborou Vitoria Pereira

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