Descrição de chapéu Escravidão hoje

135 anos após Lei Áurea, resgate de trabalho análogo à escravidão tem ápice em 12 anos

Especialistas citam crescimento da fiscalização, repercussão de casos recentes e reforma trabalhista para explicar aumento dos resgates

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São Paulo e Salvador

O Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 1.443 pessoas em condições análogas à escravidão de 1º de janeiro até 14 de junho de 2023. É quase o dobro do total de 771 resgates feitos em todo o primeiro semestre de 2022.

Os registros cresceram especialmente após a liberação de trabalhadores encontrados em situação degradante em vinícolas no Rio Grande do Sul, em fevereiro. Os dados oficiais sugerem um aumento de casos de escravidão moderna no Brasil, mas a questão é: aumentaram os crimes ou as denúncias?

Auditores fiscais do trabalho durante operação de fiscalização de condições de trabalho
Auditores fiscais do trabalho durante operação de fiscalização de condições de trabalho - Divulgação/Auditoria Fiscal do Trabalho

Para explicar a evolução dos números, especialistas apontam diferentes fatores, entre eles a mudança do governo federal, a reforma trabalhista e a ampla repercussão dos casos mais recentes.

Luiz Felipe Brandão, secretário de Inspeção do Trabalho do ministério, diz que a mudança de governo teve um caráter mobilizador: "Mexeu com o espírito coletivo dos envolvidos. Com a maior divulgação do nosso trabalho, aumentam denúncias e investigações, gerando maior número de resgates".

De fato, a fiscalização aumentou desde o início da gestão petista. Até 14 de junho de 2023 foram realizadas 174 ações, contra 63 no mesmo período de 2022. Os 1.443 resgates são o maior resultado dos últimos 12 anos, só não superando o do primeiro semestre de 2011, quando 1.465 trabalhadores foram encontrados em condições de escravidão contemporânea.

Há uma retomada do combate a esse crime no país, segundo Raissa Roussenq, doutoranda em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro "Entre o Silêncio e a Negação: Trabalho Escravo Contemporâneo sob a ótica da população negra" (2019).

"O Brasil já foi referência mundial no tema, mas isso foi prejudicado nos últimos anos, com os entraves à publicação da Lista Suja do Trabalho Escravo (2017) e a extinção do Ministério do Trabalho (em 2019 e recriado em 2021), por exemplo", afirma.

Na visão de Roussenq, a reforma trabalhista de 2017 também contribuiu para maior vulnerabilidade de trabalhadores e aumento de casos. "A reforma favoreceu a precarização dos direitos trabalhistas, enfraquecendo mais quem já estava em posição frágil no mercado. Isso, aliado à crise econômica, torna o cenário propício para empresários que desejam se valer do trabalho escravo".

A relação entre reforma e escravidão moderna é contestada por José Pastore, professor titular aposentado da Faculdade de Economia da USP e especialista em relações do trabalho.

"A reforma incluiu proteções ao trabalhador terceirizado que não constavam na Consolidação das Leis do Trabalho, com melhores critérios para os contratos de prestação de serviços", diz.

Pastore afirma que a modernização das leis trabalhistas aumentou não só a liberdade para a terceirização, mas também a responsabilidade sobre o processo de contratação, com a exigência de uma análise técnica das empresas contratadas.

Aqui o sociólogo vê brecha para a exploração da mão de obra: "O contratante pode assinar com uma empresa que não respeita a lei nova. Mas não se trata de demonizar a reforma trabalhista e, sim, de atacar e corrigir empresas que contratam terceirização de forma inadequada".

Já a professora de direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Lívia Miraglia, diz que sempre existiram casos de trabalho análogo à escravidão no país, com raízes na história do Brasil e nas relações socioeconômicas que perduram até hoje.

"Este tipo de trabalho tem cor, classe e gênero. Quanto maior a crise econômica, maior o número de pessoas nessa situação", diz.

Em 2023, completaram-se 135 anos da instituição da Lei Áurea, uma decisão resumida em uma linha: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil". A abolição não foi suficiente para incluir negros e negras na sociedade brasileira e é questionada até hoje nos movimentos negros.

"O Brasil nunca fez autocrítica em relação às dimensões estruturais que a escravidão teve na construção material e simbólica da nação", afirma a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Isso, segundo ela, faz com que o entendimento sobre o que é trabalho digno seja ainda incipiente no país.

Muitos trabalhadores nem sequer reconhecem que estão em situação análoga à de escravos, em especial mulheres em serviços domésticos.

"Temos visto crescer essa consciência, mas não a ponto de a grande maioria das denúncias vir dos próprios trabalhadores. É impressionante que, mesmo quando a fiscalização chega, há mulheres que não querem ir embora, não enxergam outra vida além daquilo", afirma Miraglia, também coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG.

Mas, segundo ela, a repercussão dos episódios tem ampliado a consciência. "O grande número de casos que vem sendo noticiados fez aumentar exponencialmente o número de denúncias vindas dos próprios trabalhadores".

Para a professora da UFF, o Brasil só vencerá essa chaga quando investir em igualdade. "Vivemos em uma sociedade que não é escravista, embora já tenha sido, mas desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas permitem que pequenos núcleos de escravidão existam e sejam lucrativos".

Erramos: o texto foi alterado

O título anterior deste texto referiu-se aos resgates de trabalho análogo ao escravo no Brasil como recorde. O número, porém, é o maior desde 2011 na série histórica.

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