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José Vicente

O estado racial da nação

Ainda há um longo caminho para alcançarmos uma democracia efetiva e eficaz

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José Vicente

Advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e membro do Conselho Editorial da Folha

Na cerimônia dos cem primeiros dias de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao apresentar de forma incisiva o estado da nação, denunciou a covarde agressão racista que vitimou e obrigou uma mulher negra, afrontosamente seguida por seguranças, a se despir no interior de um estabelecimento comercial e a inscrever no seu corpo negro qual era a ameaça que ele representava.

Neste 13 de maio, Dia Nacional da Abolição, a pergunta, estendida aos demais ambientes do país, sintetiza um verdadeiro estado racial da nação que, nos últimos 135 anos, pós-abolição, tem desafiado a todos e impedido o Brasil de sepultar o passado de escravidão e construir indelevelmente o futuro de liberdade, igualdade e dignidade humana inscrito como cláusula pétrea na Constituição.

O reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente - Ronny Santos - 6.set.22/Folhapress

A ideologia do racismo, que inaugurou, justificou e manteve a escravidão por mais de 350 anos, fundeou na cor da pele e na origem africana dos negros sua incompatibilidade de portadores de humanidade. A todos eles foi imputada a qualidade de mercadoria e objeto, marcando na sua estética a qualidade de indivíduo inferior a ser submetido, evitado e inabilitado como sujeito de direitos. Plantou e irrigou a desconfiança e dubiedade que mede e delimita seus atos, seus gestos e cerceia seus movimentos.

Na República que sucedeu o regime de terror da escravidão, a reivindicação dos negros pelo imperativo de justiça e igualdade, participação isonômica do poder e construção de políticas de inclusão e empoderamento —e expressão plural e estética miscigenada— tem sido fonte inexorável de reações e resistências explícitas e de violência e contrariedades. E tem sido justamente a manipulação política, simbólica e psicológica do arquétipo do portador e merecedor da confiança o principal e vil estratagema operado subterraneamente pelos grupos de poder para cercear os negros dos benefícios e privilégios do progresso do país. Para mantê-los separados e desiguais.

Organizados e reproduzidos no interior dos padrões da brancura, manipulados e fortalecidos pelas narrativas e mecanismos de persuasão estruturados na violência das pregações, exclusões e invisibilidade estética privada e estatal, esses argumentos têm sido impostos de maneira incontestável e injustificável como modelo de valor. Sem dó nem piedade, desumanizam, demonizam, dividem os brasileiros e inculcam, incessantemente, a negatividade, o perigo e a ameaça representada pelos não portadores dos valores, estilos e qualidades positivadas fundeadas unicamente naquele padrão estético hegemônico.

Aqueles que a isso confrontam e contrariam sãos os inimigos a serem identificados como a ameaça à sua manutenção e reprodução —e, por isso, devem ser limitados, combatidos e mesmo suprimidos. A estética negra tem sido o perigo a ser combatido e o inimigo a ser eliminado. Ainda que a custa de um processo incivilizatório, ainda que repetindo e mantendo a mesma arquitetura lógica da opressão escravocrata.

Esse é o mais devastador veneno social que habita a mente, o pensamento, a percepção, o julgamento e a atitude de grande parte dos brasileiros. É ele que, diante da presença imaginária ou concreta da estética negra, acende o sentido de alerta, o estado de prevenção e, automaticamente, autoriza a ação hostil, que agride e violenta social, psicológica e fisicamente.

A estética negra não pode mais continuar sendo orquestrada para instilar o medo e promover a dúvida. Deve, pelo contrário, ter estimulada sua promoção, valorização e protagonismo, assim como ter garantido tratamento respeitoso, digno e positivado. Por todos e, sobretudo, pelo ambiente corporativo.

Sem enfrentar, combater e superar esse estado disfuncional e incapacitante das coisas não construiremos um julgamento moral e ético que considere apenas o caráter das pessoas. E, sem isso, não há humanidade e dignidade da pessoa humana; sem isso não há igualdade, democracia ou Estado de Direito real, efetivo e eficaz. Sem isso, inviabilizamos a República e continuaremos a manter um estado de escravidão.

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