Dentes antigos revelam detalhes sobre pessoas que não tomavam sol
Em sua boca, você não tem apenas dentes: tem cerca de 32 fósseis que contam uma história microscópica de sua saúde. E cientistas descobriram que até mesmo os dentes antigos, descartados, nada brancos, de pessoas que viveram centenas de anos atrás contam igualmente uma história sobre elas.
Reprodução/Sciencedirect | ||
Ossos de um esqueleto na França que foram analisados pelos cientistas |
De acordo com um estudo publicado na segunda-feira pelo "Journal of Archaeological Science", pesquisadores descobriram um registro permanente de deficiência de vitamina D na estrutura microscópica de dentes do passado, o que ilumina os desafios cotidianos que povos da antiguidade tinham de enfrentar.
Quando o corpo não recebe vitamina D suficiente, do sol ou de alimentos, eles constataram, surgem brechas ou bolhas na dentina, a camada por sob o verniz dentário que forma cerca de 85% da estrutura do dente. Essas anomalias revelam histórias não só sobre condições ambientais do passado ou a disponibilidade de comida como sobre culturas e sociedades.
Ao longo da História e através do mundo, houve epidemias de raquitismo infantil, uma doença caracterizada por pernas curvas e deformações de bacia, e causada em parte pela falta de exposição à luz solar. Antropólogos identificaram surtos de raquitismo em lugares de latitude elevada e com acesso limitado à luz solar, como algumas porções da Inglaterra, Canadá ou França., Mas a vasta maioria das crianças que sofrem de raquitismo superam a doença. Isso torna o registro dentário de sua condição importante, porque as anomalias internas dos dentes não desaparecem com a idade, ao contrário do que pode acontecer com as pernas curvas, por exemplo, nos ossos dos adultos. Compreender os surtos de raquitismo do passado pode ajudar a estudar a saúde das crianças atuais.
Os pesquisadores, comandados por Megan Brickley, antropóloga da Universidade McMaster, em Hamilton, Ontário, examinaram restos de esqueletos de seis pessoas enterradas nos séculos 18 e 19 em cemitérios conhecidos por conter vítimas de raquitismo e indivíduos que sobreviveram a deficiências de vitamina D sofridas na infância. A equipe determinou quem provavelmente havia sofrido de raquitismo com base nos ossos, e em seguida analisou os dentes, cortando cada dente em diversas fatias transparentes, mais finas que uma folha de papel higiênico, e examinando-as ao microscópio.
Eles descobriram que um homem de 24 anos que havia sido sepultado em Quebec entre 1771 e 1860 havia sofrido quatro surtos de raquitismo em sua curta vida: dois antes dos dois anos de idade, mais um por volta dos seis anos, e por fim um episódio consideravelmente severo por volta dos 12 anos. Indícios desse episódio final em seu terceiro molar foram correlacionados à curvatura anormal em seu cóccix que só poderia ter se desenvolvido mais ou menos na mesma época.
"Pudemos ver o interior do dente, o que estava abrigado lá, tantos anos atrás", disse Brickley.
Eles conseguiram atingir tamanha precisão porque os dentes se desenvolvem em ritmos diferentes, o que deixa círculos concêntricos como os anéis encontrados nas árvores, com o passar do tempo. Os pesquisadores puderam observar as anomalias nessas camadas a fim de estimar ocorrências e sua severidade.
"Não se pode obter essa informação de um esqueleto", disse Lori D'Ortenzio, paleopatologista que participou do estudo.
Lynne Schepartz, antropóloga da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e especialista em saúde pré-histórica, não participou da pesquisa, e considera os resultados empolgantes. Estudar deficiências de vitamina D tomando por base os dentes, ela afirma, pode revelar informações sobre o acesso limitado a luz solar dentro de determinadas populações, como resultado de normas de trabalho, cultura ou status social.
Mas as percepções que a técnica propicia não se limitam ao passado. Estima-se que mais de um bilhão de pessoas no planeta não recebam vitamina D suficiente, e em todo o mundo o raquitismo pode continuar afetando até 9% da população infantil, em algumas áreas. Conhecer o passado e os fatores de estilo de vida que conduziram ao raquitismo em uma dada comunidade, em qualquer lugar do planeta, pode ajudar a colocar em contexto histórico aquilo que está acontecendo hoje.
No Reino Unido, por exemplo, o raquitismo está em ascensão. O fato de que a deficiência de vitamina D pode estar registrada nos dentes "certamente é novidade para mim", afirmou em e-mail John Middleton, presidente da Faculty of Public Health britânica.
"Estamos preocupados com a deficiência dietética, falta de laticínios, peixe e carne, e especialmente a falta de luz do sol para crianças que passam todo seu tempo dentro de casa, assistindo TV ou jogando videogames", ele disse.
Isso pode não ser tão anormal –no passado, o smog da era vitoriana, a má nutrição, o trabalho em locais fechados, e roupas que cobriam a maior parte do corpo contribuíram para o raquitismo. Agora, com os registros dentários, é possível até identificar mais casos da doença em adultos, antes ignorados.
A oportunidade de acessar histórias jamais contadas, aprisionadas nos molares que começaram a crescer quando um feto ainda estava no útero, podem também contribuir para conversações em torno de uma ideia chamada Hipótese Barker, segundo a qual as condições no útero contribuem para o desenvolvimento de doenças mais tarde na vida.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) atualmente alerta as mães quanto a deficiência de vitamina D, comum durante a gestação e correlacionada a maus resultados de saúde para tanto a mãe quanto a criança. Brickley diz que indícios arqueológicos obtidos nos molares de pessoas já mortas poderiam oferecer novas correlações entre a deficiência pré-natal de vitamina D e mortes prematuras ou doenças crônicas.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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