É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
Escreve aos domingos.
Lucy in the sky with diamonds
No carro, voltando da escola, eu e a minha filha de dois anos e meio.
- Papai, biscoito!
- Não tem biscoito aqui, filhota.
- Tem biscoito em casa, papai?
- Tem, tem biscoito em casa.
- Tem bolo em casa, papai?
- Não sei, chegando lá a gente vê.
- Tem mamãe em casa, papai?
- Tem mais tarde, a mamãe viajou, ela volta à noite.
- Viajou na estrada?
- Isso, na estrada.
- [Cantarola] Pela estrada afora eu vou bem sozinha... [Se cala por uns segundos, então solta, assertiva, como que se defendendo de uma acusação]. Eu não tô dodói!
- Não, você não tá dodói. A vovó da Chapeuzinho é que tá dodói.
- Meu joelho não tá dodói! [Ela tinha ralado o joelho no último fim de semana. Agora olha o joelho, encafifada]. O dodói saiu do joelho, papai.
- É, o dodói saiu.
- [Súbita iluminação] Ele foi pra casa dele! O dodói foi pra casa dele!
- O dodói foi pra casa dele, é?
- [Quase blasé, falando sobre um fato corriqueiro] Foi. Tá lá na casa dele. Com a mamãe dele... Com o papai dele...
- Hm. E o irmãozinho dele? O dodói tem um irmãozinho? [Tento enfiar um irmãozinho pro dodói, de contrabando, pra minha filha ver que todo mundo tem irmãozinho e ela não precisa sentir ciúmes do dela].
- [Sacando a manobra, brava, como quem percebe o brócolis disfarçado no purê] Não! Tem biscoito na casa do dodói!
- Hm, tem biscoito na casa do dodói.
- [Muito feliz] Tem, papai! [Aflita] Papai, não tem bolo na casa do dodói!
- Não tem bolo?
- Não! [Ainda mais aflita] Precisa comprar bolo pra casa do dodói, papai! Precisa comprar bolo pra casa do dodói, papai! É aniversário dele! [Ameaçando chorar] É aniversário do dodói! Não tem bolo!
- Tudo bem! A vovó do dodói tá indo pra casa do dodói e ela vai comprar bolo no caminho.
- Não é no caminho que tem bolo, papai, é no supermercado!
- Isso, no supermercado.
- [Aliviada] A vovó do dodói vai comprar bolo pro dodói! [Falando diretamente com a vovó do dodói, no supermercado, dura] Compra brigadeiro também, vovó do dodói! Compra brigadeiro de morango e brigadeiro de chocolate! Papai, a vovó do dodói vai comprar bolo e brigadeiro pro dodói!
- Que bom. E quem mais tá na casa do dodói? A mamãe do dodói, o papai do dodói, quem mais?
[Longo silêncio]
- Eu sou a fada do dente.
- [Confuso -não tenho a menor ideia de quem seja a "fada do dente"-, mas feliz com a possibilidade de embarcar em outro enredo lisérgico] Quem é a fada do dente?
- [Surpresa com a pergunta] Sou eu.
- Claro. E a fada do dente gosta de bolo? Ela vai na festa do dodói?
- [Fica quieta por um tempo. Suspira, com preguiça da minha pergunta, preguiça da festa do dodói, da família do dodói, talvez da nossa família também; então, observa o trânsito lá fora, fecha os olhos e canta, buscando algum conforto para sua melancolia nos versos do cancioneiro popular brasileiro] A sapa na lava a pá/ Na lava parqua na cá/ Ala mara lá na lagaa/ Na lava a pá parqua na cá/ Mas qua chalá.
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