É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
Escreve aos domingos.
Carta pro Daniel
Talvez algum dia, nas próximas décadas, você esbarre nessa crônica, pela internet. Talvez uma tia comente, "lembro de um texto que o teu pai te escreveu quando você era bebê, era sobre uma praça, acho, cê já leu?" Talvez eu mesmo te mostre, na adolescência, vai saber?
Essa crônica é sobre uma praça, sim, sobre uma tarde que a gente passou na praça, no dia 5 de abril de 2016 (ontem). Não é nenhuma história extraordinária a que vou te contar. É uma história simples, feita de elementos simples como é feita a maior parte da vida da gente, esses 99% de que a gente desdenha, sempre esperando por acontecimentos extraordinários. Mas acontecimentos extraordinários são raros, como a própria palavra "extraordinários" já diz, aí a vida passa e a gente não aproveitou. Pois hoje você me fez aproveitar a vida, Daniel, por isso resolvi te escrever, agradecendo.
Eu tava lá em casa, triste de tudo. Triste com os rumos do país, mais triste ainda com outras questões paralelas inteiramente irrelevantes para a pátria, mas especialmente doloridas para este patrício, então você cruzou a sala sorrindo no colo da Jéssica e me deu uma vontade louca de passarmos um tempo juntos. Falei, "Queca, dá esse menino aqui, a gente vai na praça, eu e ele, vamos, Dani? Só os homens?". Eu te botei no carrinho, descemos pelo elevador e ganhamos a rua.
Você ia batendo as pernas, eufórico, apontando as coisas e soltando seus grunhidinhos, como que querendo me mostrar o que vê a caminho da praça, com a Jéssica, todas as manhãs. Eu ia dando nome às coisas. É, Dani, é a árvore. É, é o carro. É o caminhão. As pessoas que a gente cruzava abriam sorrisos pra você e depois pra mim. Nós sorríamos de volta, eu por orgulho, você por simpatia -você é assim desde que nasceu, de bem com a vida, tão diferente deste teu pai, sempre angustiado, aflito, procurando cabelo em ovo.
Chegamos na praça. Eu quis te pôr no balanço, mas você me apontou o túnel de concreto. Te coloquei numa ponta do túnel, fui andando em direção à outra, sumi de vista por uns segundos e você deu uma resmungada, achando que eu ia te abandonar ali, mas então me agachei e apareci do outro lado. Você achou aquilo hilário —"O cara tava aqui, sumiu e apareceu lá!"—, deu uma gargalhada e veio engatinhando até mim.
Fui te pegar no colo, mas você se esquivou e olhou pra outra ponta. Entendi a brincadeira, corri até a outra ponta, me agachei. Você me viu, gargalhou de novo —"Agora o cara tá do outro lado! Que loucura!"—, foi até lá, me mandou voltar e nós ficamos perdidos nisso pelo que me pareceram horas: eu aparecia numa ponta do túnel, você engatinhava até lá, eu corria pra outra, você vinha de novo.
Quando me dei conta -não vou dizer que meus problemas tivessem sumido, que a tristeza houvesse passado, mas...-, eu estava, como diria o poeta, comovido como o diabo.
De noite, deitado na cama, eu me consolaria: esse mundo é uma tragédia, o Brasil tá ferrado e eu também não me sinto muito legal, mas eu tenho um filho que põe sorrisos no rosto de quem passa e que com algumas gargalhadas reconforta o meu coração. Enquanto isso, no quarto ao lado, você estaria se perguntando: "O cara sumia de um lado, aparecia do outro, como será que ele faz? É truque? É mágica?". Depois dormiríamos, acreditando que tudo iria ficar bem.
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