bernardo ajzenberg
escreveu até março de 2004
Bernardo Ajzenberg é jornalista, escritor e tradutor. Trabalhou em publicações como "Veja", "Gazeta Mercantil" e, na Folha, foi ombudsman entre 2001 e 2004. Publicou, entre outros, os romances "Olhos secos" (2009), "Efeito suspensório" (1993) e "Duas novelas" (2011).
As noivas
No dia 16 de março, uma jovem subiu uma escada encostada no muro da Polícia Federal no bairro de Higienópolis (São Paulo), onde estava preso Luiz Estevão. Dizia-se uma vizinha do local. Do alto, elogiou o ex-senador, que tomava sol no pátio: "Você é mais bonito ao vivo". A imprensa registrou sem hesitar a curiosa cena.
O Painel da Folha, dia 20 daquele mês, trouxe a explicação, na nota "Escada oportuna": "Admiradora? Que nada. A "vizinha" da Polícia Federal, que subiu no muro para ver e elogiar Luiz Estevão, é a próxima capa de uma revista masculina".
O gesto "espontâneo", portanto, não passara de uma armação propagandística, na qual a imprensa atuou sem querer.
Retomo o episódio para falar de outra promoção, ocorrida semana passada, mas que, diferentemente da anterior, teve a colaboração ativa da imprensa. Desta vez, os jornais, Folha à frente, não foram ludibriados: participaram, como cúmplices, da propaganda.
Numa criativa e bem-humorada idéia de marketing, bolou-se colocar três moças vestidas de noiva para escalar (fazer rapel) um prédio da avenida Paulista ao som de "As quatro estações", de Vivaldi, executada ao vivo por um violinista. Objetivo: chamar a atenção para uma feira especializada em véus e vestidos.
Avisada com antecedência pelos organizadores, a imprensa deslocou profissionais. Na edição de quinta, a Folha publicou a foto com excepcional destaque (14,5cm x 20,5cm) em sua capa.
"Na nossa avaliação", afirma Paula Cesarino Costa, secretária de Redação, "o destaque se justifica pelo inusitado da cena, ocorrida em local considerado como "coração" da cidade, e pela beleza intrínseca da imagem.
Esses aspectos, sobretudo em fotografia jornalística, se sobrepõem a objeções quanto ao involuntário efeito promocional da publicação, diluído nesse caso por beneficiar uma feira do setor e não uma empresa apenas".
INTERROGAÇÕES
Em duas oportunidades (18 de março e 5 de agosto), abordei aqui a nociva e crescente confusão existente na imprensa entre informação e comunicação. Pois o tema retorna agora.
A imagem é cativante. A foto, plasticamente irrepreensível (faz lembrar aquelas fotos de... publicidade). Mas interrogações no mínimo polêmicas cercam o caso. Trata-se de um fato jornalístico? Deveria, o jornal, ignorá-lo só porque se trata da divulgação de um evento e não de uma notícia? Merecia tanto destaque?
Faz tempo que a publicidade deixou de se limitar ao tradicional (jornal, TV, revista, rádio, cinema, merchandising, outdoor, displays, mala-direta) e passou a sofisticar suas ações.
A questão é: de que forma deve o jornalismo tratar eventos derivados desse tipo diferente de estratégia de comunicação?
Fazer a cobertura da feira propriamente dita seria natural para uma editoria de negócios (que mercadorias se apresentam ali, qual a expectativa de vendas, serviços sobre o local, datas e horários etc.). Já a divulgação institucional do evento deve ser tratada com especial cautela.
Nesse caso, dada a curiosidade despertada pelo rapel exótico em local tão estratégico, caberia, sim, um registro jornalístico.
Mas duvido que seus próprios organizadores não se tenham surpreendido com as dimensões que lhe garantiu a Folha -o maior jornal do país-, sem que precisassem gastar um tostão em espaço publicitário.
Além da Folha, só o "Diário de S.Paulo" e o "Jornal da Tarde" publicaram fotos em capas, ainda assim com menos destaque.
"Jornal do Brasil", "Valor", "Gazeta Mercantil" ignoraram o chamado. O "Estado de S.Paulo" publicou foto e texto pequenos em página interna. O "Agora" fez algo semelhante, mas mais discreto. O "Globo" trouxe foto grande, mas na sua página 2.
Pode-se arguir que este ombudsman faz barulho por nada, sobre um acontecimento fugaz, divertido, marginal. Engano.
Nesse episódio, bem mais do que no da modelo que subiu no muro da PF (no qual, insisto, a imprensa foi usada), esconde-se uma questão decisiva: até que ponto o jornalismo (informação, notícia) está disposto a incorporar, feito uma esponja, elementos mais ou menos explícitos de propaganda, sujeitando-se, mesmo inconscientemente, a manipulações do "mercado"?
Por mais irresistivelmente bela que seja a imagem criada, por mais que a cena montada seja bacaninha e inusitada, curiosa ou engraçada, a questão é de delimitação de terrenos. E, aqui, vale a pena ser "xiita", chato até, zelar pelas devidas proporções.
Cada vez mais engenhosos, publicitários e organizadores de eventos nada têm a ver com isso -eles fazem o seu trabalho. Mas será que, em casos assim, o jornalismo está a fazer o seu?
ENQUANTO ISSO, NO FRONT...
Por seu valor jornalístico e documental, reproduzo trechos de um comunicado interno da agência de notícias norte-americana "Associated Press", distribuído na semana passada a seus diretores, com perguntas e respostas sobre a cobertura do conflito no Afeganistão (tradução de Claudia Strauch):
"P: Como são as condições para nossa equipe?
R: Em muitas áreas, há pouca oferta de alimentos e veículos. Ellen Knickmeyer (...) sobreviveu durante dias apenas à base de biscoitos (...) viajaram a cavalo durante horas, às vezes atravessando rios com água até o peito dos cavalos. Quando é possível ir de carro (...) significa dirigir horas por caminhos de fazer os ossos trepidarem, por vezes indo na beirada de montanhas íngremes. O fornecimento de energia elétrica é irregular (...). Em muitas áreas nunca se ouviu falar de banheiros modernos e chuveiros quentes (...) o pessoal ficou acampado em casas de famílias, que se aglomeravam perto de nossos laptops para ver que equipamento esquisito havíamos levado (...).
P: E quanto à segurança?
R: Os perigos (...) vêm de todo lado: do combate entre grupos armados, de salteadores nas estradas, do terreno árido e da pouca comida e água (..). Recusamos viagens a áreas particularmente perigosas. Praticamente toda nossa equipe no Afeganistão participou de cursos de treinamento em segurança montados por veteranos das forças especiais britânicas (...)
P: Houve algum ferido?
R: Em 12 de novembro, Marco di Lauro, um fotógrafo italiano a serviço da AP, levou um tiro de um miliciano de tocaia do Taleban (...) A bala atingiu a placa protetora do colete à prova de bala e ele não se machucou.
P: Como é a cooperação com os militares americanos?
R: Até esta semana, os militares (...) haviam oferecido aos repórteres acesso mínimo a suas operações (...) melhorou quando os repórteres foram autorizados a acompanhar as forças americanas dentro do Afeganistão (...). Eles têm autorização para enviar matérias, desde que não dêem informações sobre a força militar, planos da missão, localização exata da base ou outros assuntos delicados (...)."
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