bernardo ajzenberg
escreveu até março de 2004
Bernardo Ajzenberg é jornalista, escritor e tradutor. Trabalhou em publicações como "Veja", "Gazeta Mercantil" e, na Folha, foi ombudsman entre 2001 e 2004. Publicou, entre outros, os romances "Olhos secos" (2009), "Efeito suspensório" (1993) e "Duas novelas" (2011).
Vozes na barbárie
Leitor número 1: "Sou médico e trabalhei em pronto-socorro durante mais de dez anos. Habitualmente convivemos com policiais e percebemos que a sua vida não é fácil. Se tratam com cordialidade, podem ser surpreendidos pela truculência dos transgressores que provêm dos piores meios possíveis. Recentemente em Araraquara (SP) um policial, pai de família, perdeu a vida ao abordar com diplomacia um indivíduo que acabara de assaltar uma loja a três quarteirões. Levou um tiro à queima-roupa como resposta".
Leitor número 2: "É incrível como, diante da violência que nos assola, que nos aprisiona em nossas casas, que nos tira a liberdade de podermos visitar pontos turísticos da cidade, frequentar bares e restaurantes, ou mesmo de tomar um sorvete na esquina, não encontramos na Folha ninguém a fim de realmente tomar uma posição que possa valorizar uma operação policial que poderia ser uma fonte geradora de auto-estima para nossos policiais, que recebem um salário desumano para o risco que correm".
Leitor número 3: "Vocês, da Folha, também precisam esclarecer melhor de que lado estão: do lado da lei ou do lado dos que acham que os criminosos são uns coitadinhos".
A primeira mensagem surgiu a partir de reportagem do sábado passado, dia 2, intitulada "PM é flagrado agredindo assaltante deficiente". As outras duas se referem à operação da Polícia Militar em Sorocaba (SP), na última terça-feira, que brecou uma ação criminosa e resultou na morte de 12 integrantes do PCC.
Se as reproduzo, é porque expressam uma parcela significativa de leitores do jornal descontentes com o que consideram uma parcialidade no tratamento dado à questão da segurança pública.
Não há estatística a demonstrar serem eles majoritários, mas é sem dúvida válida a polêmica que suscitam.
ESPECIALISTAS
Como a dengue, também este tema é hoje objeto de exploração política. Tão premente, que até um partido em cuja tradição ele não marcava ponto, como o PT, viu-se obrigado a apresentar propostas concretas dias atrás, com pompa e circunstância, enquanto o governo Alckmin, sob pena de naufragar, demonstra disposição para reagir.
Comentando a edição de quarta-feira, lamentei em crítica interna o fato de que nenhum analista favorável à ação da PM em Sorocaba fora ouvido na reportagem "Para especialistas, mortes abalam eficiência da ação". Todos ali a questionavam, em nome dos direitos humanos.
Pareceu-me estranho, já que boa parte da população e da mídia (com destaque para o rádio) exultava diante do ocorrido.
Não quero, aqui, fazer a defesa da megaoperação, nem de outra semelhante -mais cinematográfica, embora menos letal-, efetuada pela Polícia Civil na favela Pantanal, na quinta-feira.
Tampouco cometeria a insensatez de colocar em dúvida um dos pilares do bom jornalismo, que é a posição crítica e questionadora diante dos fatos.
PLURALISMO
A questão reside em avaliar um outro fundamento, outro princípio igualmente básico do jornalismo que a Folha se propõe a cultivar: o pluralismo.
Por mais que o jornal expresse em editoriais suas preocupações ("deve ser avaliado se o uso da força na Castelinho não foi desproporcional", pede o editorial "Reação policial", da quinta-feira), é obrigação da reportagem oferecer a mais ampla visão dos acontecimentos, com toda sua complexidade e suas repercussões nem sempre uníssonas.
Respeitar o direito do leitor de ter acesso a visões conflitantes. Não permitir que eventuais posições adotadas por colunistas ou editorialistas ofusquem a pluralidade que deve caracterizar a apuração jornalística.
O editor de Cotidiano, Nilson de Oliveira, explica ao ombudsman que "entre os especialistas em segurança consultados pela Folha, não houve nenhum que se manifestasse favorável à ação da Polícia Militar".
E acrescenta: "Quem acompanha as frequentes discussões sobre segurança pública no país dificilmente vai encontrar algum técnico que defenda iniciativa repressiva da envergadura da promovida pela polícia paulista na semana passada".
Ora, depende do que se quer dizer com "especialista" e "técnico". A Folha não publicou, mas pude ler em outros jornais manifestações favoráveis à operação, e não apenas da própria polícia (como o comandante-geral da PM na seção Tendências/Debates de ontem) ou de autoridades atreladas ao governo. A começar pela "bancada da segurança" na Assembléia Legislativa.
Podem até ser opiniões menos qualificadas intelectualmente, quem sabe, mas isso não as torna menos representativas.
Todo mundo sabe que o assunto segurança tende a ganhar cada vez mais presença na "boca do povo", seja pela insegurança vigente, seja por sua inseminação nos comícios e programas eleitorais.
Só por isso, e por mais que possa ferir certas sensibilidades, já seria fundamental que a Folha preservasse a imparcialidade na cobertura do tema, batendo-se por ouvir vozes discordantes, sob pena de ser instrumentalizada, sem querer, por militâncias deste ou daquele lado.
PAINEL DO OUTRO LADO
Algo diferente tem havido na Folha com a aplicação (ou não-aplicação) do princípio do "outro lado" (ouvir versões de pessoas ou instituições afetadas no noticiário). Só isso explica, na semana passada, a ocupação tão exacerbada do Painel do Leitor por cartas de autoridades/personalidades/celebridades questionando matérias.
O susto começou na terça, quando a seção foi toda ocupada por apenas duas cartas de representantes de instituições "atingidas" pelo jornal.
No dia seguinte, a categoria ganhou quatro das nove mensagens, sendo a última uma crítica justamente ao desvirtuamento verificado no dia anterior: "É um absurdo o que a Folha faz com o "Painel do Leitor'", queixava-se Carlos Kolb (São Paulo).
Na quinta, foram cinco do total de sete. Na sexta, um "replay" da terça: nenhuma das (quatro) cartas era de "simples" leitor.
Segundo a direção de Redação (DR), o Painel aproveita, em média, cerca de 10% das mensagens que recebe. Seu raciocínio: se fosse criada uma segunda seção (apenas para leitores propriamente ditos), o aproveitamento iria a 20%, ou seja, 80% continuariam de fora.
Além disso, o jornal acha "republicano" que autoridades e leitores o interpelem em sua condição de cidadãos e tenham suas mensagens publicadas no mesmo espaço.
A criação de duas seções sugeriria uma distinção entre duas classes de leitores.
Outro argumento enviado ao ombudsman: "Nossa seção de cartas é frequentemente "invadida" por contestações pela simples e saudável razão de que a Folha tem por política publicá-las, ao contrário da praxe em outras publicações, que é, sabidamente, a de engavetá-las".
Também recebi um e-mail de um leitor comentando o assunto, por outro caminho:
"Corajosa e transparente como de costume, a Folha publicou a reclamação do leitor Carlos Kolb... A publicação da manifestação do leitor (comum), todavia, foi concomitante à das demais cartas de figurões ocupando espaço sempre desproporcional ao dos leitores. Conclusão? O recado para nós é: ok, registramos suas queixas, mas não mudaremos nada. Paciência...".
O risco é de esvaziamento da seção. Pior: sua transformação em Painel do Outro Lado -algo nocivo não só à interlocução jornal-leitor mas também ao princípio que prevê a obrigatoriedade do "outro lado" nas reportagens.
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