bernardo ajzenberg
escreveu até março de 2004
Bernardo Ajzenberg é jornalista, escritor e tradutor. Trabalhou em publicações como "Veja", "Gazeta Mercantil" e, na Folha, foi ombudsman entre 2001 e 2004. Publicou, entre outros, os romances "Olhos secos" (2009), "Efeito suspensório" (1993) e "Duas novelas" (2011).
Terno, boné, jóia, Rolls Royce
Uma das poucas certezas, quando Lula tomou posse, era de que o advento do ex-metalúrgico ao posto de presidente da República criaria fatos simbólicos inusitados, alteraria o cenário do Planalto, do Alvorada e da Granja do Torto. O desafio era captar os detalhes que configuravam o novo "espírito" -e isso valia para as figuras do presidente e da primeira-dama.
Destaquem-se a reativação da churrasqueira do Torto, as peladas, a cadela Michele, o apego ao contato direto com a população; lágrimas, suor, barbas no poder.
Na última quarta-feira, porém, o noticiário deu sinais de que, passados 180 dias, esse item da pauta cobra uma revisão.
Naquele dia, todos os jornais publicaram com enorme destaque em suas capas a gafe do cerimonial da Corte espanhola, que fechou a porta do Rolls Royce onde estavam Lula e Marisa logo depois da descida dele e antes de que ela pudesse deixar o veículo também (veja ao lado).
Episódio curioso? Claro. Merecia registro? Sim. Mas é evidente que houve exagero no espaço dado à divulgação de um evento secundário, pelo qual nem o presidente nem sua mulher tiveram responsabilidade.
Da mesma forma, explorou-se à solta que Lula usou terno num jantar de gala no qual a realeza espanhola vestia casaca - fato que, como informou o colunista Clóvis Rossi na sexta, não só já tivera antecedentes como estava previsto, sem problemas, nos acertos prévios de cerimonial.
Uma coisa é revelar, como fez a Folha semanas atrás, o usufruto, pela primeira-dama, de serviços pessoais gratuitos, de jóias cedidas (depois devolvidas) etc. Isso diz respeito, sim, a uma questão ética -e simbólica- relevante.
O uso do boné do MST pelo presidente da República também não deixou de expressar um titubeio -tanto que Lula, agora, veste um boné atrás do outro justamente para "diluir" aquele dos sem-terra.
Estamos, até aí, no terreno da crítica legítima, democrática; da apuração jornalística polêmica, mas saudável e necessária.
Já o tratamento dado aos casos do Rolls Royce e da casaca -registre-se que a Folha não fez, aqui, o pior papel- escorrega para um outro terreno: o da gozação, da galhofa ou, para usar o termo de uma leitora indignada, da simples esculhambação.
Passados os seis meses iniciais do governo Lula, seria bom que os jornais atualizassem o modo de tratar aquela primeira questão, a dos símbolos. No mínimo para não verem o que era legítimo jornalisticamente se deformar em instrumento de uma oposição política que, para desgastar e desqualificar a figura presidencial, agarra-se a qualquer pretexto.
MORTO É MORTO
Cresce a dramaticidade da situação das tropas anglo-americanas no Iraque, que esperavam deixar o país em breve.
Fala-se em "guerra de guerrilha" por parte de resistentes pró-Saddam Hussein e em permanência das forças de ocupação, agora, por tempo ilimitado.
Toda a imprensa, internacionalmente, fez bastante barulho em torno do fato de que o número de soldados americanos mortos na Guerra do Iraque, contando o período pós-conflitos (oficialmente encerrados em primeiro de maio), já superou o da Guerra do Golfo (1991).
Não é pouca coisa, em especial para as pretensões de reeleição do presidente George W. Bush. Ainda mais se a isso se somam as dificuldades dos EUA e da Grã-Bretanha para demonstrar serem verdadeiros os motivos alegados para invadir o Iraque (armas de destruição em massa, laços de Bagdá com a rede terrorista Al Qaeda).
Um levantamento divulgado em texto do site "Editor & Publisher" (editorandpublisher.com), na última quinta-feira, indica, porém, que a situação, é ainda mais grave do que informam as TVs e os grandes jornais norte-americanos.
Estes, como também a Folha, têm publicado, em regra, apenas o número de soldados "mortos em combate", nas chamadas "ações hostis". Seriam, até a última sexta, cerca de 150.
Citando um outro site, criado para contabilizar as perdas de militares da coalizão com base em diferentes fontes oficiais, a reportagem do "E&P" informa, no entanto, que, considerado o conjunto das mortes, o total chega a pelo menos 224 americanos, sendo 85 a partir do "final" da guerra (ante o total de 33 que a mídia publica, como "mortos em combate", desde 2 de maio).
O dado é importante não só porque, em síntese, "morto é morto", como se diz, mas também porque, segundo o texto, as tais mortes "fora de combate" - analisadas uma a uma pelo site- não teriam acontecido tão "fora de combate" assim.
Assinada por Greg Mitchell, a reportagem argumenta: "Pode-se afirmar com segurança que quase todas essas pessoas estariam vivas se já tivessem retornado aos Estados Unidos".
É difícil assegurar que os números analisados ou contabilizados nesses sites sejam, também, totalmente verdadeiros (podem existir, até, outros levantamentos que ignoro). Mas eles devem servir como alerta para que o jornal não se limite às estatísticas parciais divulgadas pelo governo ou pela mídia dos EUA.
Não seria o caso de acoplar aos dados oficiais de "mortos em combate" alguns números -como esses, por exemplo, dos "fora de combate"- que permitam oferecer aos leitores uma visão a mais e, portanto, algo mais próximo da realidade?
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