É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
Não se pode 'lavar' a tortura
O debate sobre a prática de tortura pelos EUA tomou um rumo extremamente perigoso após a divulgação do relatório do Comitê de Inteligência do Senado pôr o dedo na ferida.
Refiro-me ao fato de que muita gente, em vez de se limitar a condenar essa aberração, passou a discutir se a tortura é eficaz ou não para obter informações na guerra contra o terrorismo.
Aceitar o debate nesses termos significa aceitar que há uma tortura "boa", aquela da qual resultam informações úteis, e uma tortura "ruim" por inútil como fonte de informações.
O ex-vice-presidente Dick Cheney justifica claramente a tortura ao perguntar: "O que nós deveríamos fazer (com Khaled Sheikh Mohamed, o suposto cérebro dos atentados de 11 de setembro de 2001)?
Beijá-lo nas bochechas e dizer 'por favor, por favor, nos conte o que sabe'"?
Não é preciso beijar ninguém na bochecha ou em qualquer outro lugar. Basta seguir o "Manual de Campo do Exército" dos EUA, editado em setembro de 2006, que proíbe "atos de tortura física e mental".
Simples assim. É óbvio que terroristas não se dobram por afagos, mas é igualmente óbvio que um Estado não pode descer ao nível dos terroristas e, como eles, usar a violência para extrair confissões e/ou informações ou para abalar o adversário.
Parêntesis: esse raciocínio vale para a prática de torturas pelo aparelho de Estado brasileiro, tanto na ditadura (contra presos políticos) como agora, na democracia (contra presos comuns). Fecha parêntesis.
A única maneira de obter informações sobre o terrorismo é uma inteligência cada vez mais sofisticada e aperfeiçoada.
Leva tempo? Leva, mas é a única forma civilizada de operar, sob pena de se borrar a fronteira entre civilização e barbárie.
Não adianta disfarçar a tortura e chamá-la de "técnicas de interrogatório reforçadas", como fez o atual chefe da CIA, John Brennan. Continua sendo tortura, como ficou demonstrado no relatório do Senado.
Brennan, aliás, deixou aberta a porta para que as "técnicas de interrogatório reforçadas" voltem a ser usadas no futuro.
Afinal, se é válido imaginar que há uma "tortura boa" (que obtém informações), está semeado um campo fértil para ela, pois a ameaça terrorista só fez aumentar antes como depois da prática disseminada de violências contra suspeitos.
Estudo do Instituto para a Economia e a Paz revelou que mortes relacionadas ao terrorismo aumentaram 60% em 2013 na comparação com o ano anterior.
Grupos como o Estado Islâmico, o Boko Haram, na Nigéria, e o Taleban (no Afeganistão e no Paquistão) responderam por dois terços das quase 18 mil mortes, número que de fato caracteriza uma guerra.
Guerra disseminada, de resto: o número de países em que ocorreram mortes ligadas ao terrorismo aumentou de 15 para 24.
Essa situação e a experiência prévia da CIA tornam valiosa a tentativa de um grupo de congressistas de propor um "Ato Americano contra a Tortura", que inscreveria nas regras do jogo o manual do Exército que proíbe a tortura.
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