É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
Falta coração à democracia
Da primeira mulher a ocupar o número 10 de Downing Street, depois de sua correligionária Margaret Thatcher, espera-se que, ao assumir, crave na agenda o credo da austeridade e do liberalismo.
Não foi o que fez Theresa May, a nova premiê britânica. Ao contrário: propôs-se lutar contra "a injustiça que queima", uma característica dos tempos modernos, mesmo nas democracias mais avançadas e mais antigas.
Niklas Halle'n/AFP | ||
Manifestantes favoráveis à saída britânica da UE pedem que Theresa May acelere processo |
É uma confirmação indireta, vinda de fonte inesperada, de que tem razão uma outra mulher, Michelle Bachelet, a presidente do Chile: "A democracia representativa por si só já não dá resposta aos anseios das pessoas de participarem da construção da sociedade" (entrevista recente a "El País").
Não é opinião isolada: pesquisa do instituto Metroscopia publicada há um mês informa que 74% dos espanhóis não estão satisfeitos com o funcionamento da democracia.
Bachelet estende sua observação sobre a desconfiança em relação à democracia ao "mundo empresarial e às instituições religiosas", para concluir: "Há um questionamento à elite".
O voto dos britânicos para deixar a União Europeia explicitou esse questionamento: a maioria dos representantes das elites de diferentes setores pediu o voto pela permanência ""e perdeu.
Constata, por exemplo, Jean Pisani-Ferry, comissário-geral de "France Stratégie", instituição de assessoria política de Paris: "Em toda parte, um número significativo de cidadãos tornou-se hostil aos 'cognoscenti" (os peritos, os especialistas, a elite, enfim). Acrescenta Pisani: "[Esses cidadãos] não querem que seu julgamento dependa de políticos, acadêmicos, jornalistas, organizações internacionais ou centros de pesquisa".
Esse repúdio foi, aliás, claramente explicitado por Michael Gove, o ministro britânico que foi das vozes mais ativas na campanha pelo "não" à Europa: "As pessoas neste país já tiveram o suficiente da parte dos 'experts."
Por mais que democracia signifique o governo do povo, o fato é que ela foi se transformando em território das elites, nas suas várias facetas, criando o ambiente para a injustiça que queima, como disse Theresa May.
Aponta Ellie Mae O'Hagan, em coluna no "Guardian": "33% dos membros do Parlamento foram a escolas privadas e quase um quarto frequentou Oxbridge [fusão de Oxford com Cambridge, grifes de excelência]; 43% dos colunistas de jornal e 26% dos executivos da BBC foram educados em escolas privadas."
Comparação essencial: apenas 7% dos britânicos frequentam escolas privadas, até porque, ao contrário do Brasil, o ensino público não é um desastre. Mas também no Reino Unido a escola privada é a preferida para a educação da elite.
O grande problema quando se criticam a democracia e a sua elitização é que não se inventou até agora uma alternativa palatável. Fica, então, essa sensação de mal estar que caracteriza o mundo contemporâneo e é admitida por outra mulher-líder, Christine Lagarde, a diretora-gerente do FMI: "Gostaria que o FMI tivesse uma face humana."
A democracia agradeceria.
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