Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.
De Faurisson a Netanyahu
A Solução Final, isto é, o extermínio dos judeus, não foi concebida por Hitler, mas sugerida ao Führer por Amin al-Husseini, o mufti (clérigo islâmico) de Jerusalém em novembro de 1941. A novidade foi anunciada dias atrás por Binyamin Netanyahu perante o Congresso Mundial Sionista. Dando esse passo, que provocou justo escândalo, o primeiro-ministro de Israel formula uma nova versão do revisionismo do Holocausto. Ela caminha em trilha paralela à do revisionismo de Robert Faurisson, um dos "pais fundadores" do movimento de negação do genocídio judeu.
O francês Faurisson não foi o pioneiro. Antes dele, o negacionismo emergiu pela voz do historiador americano Harry Barnes, em 1962. Mas, naquele tempo, a memória ainda quente da abertura dos portões de Auschwitz e dos Julgamentos de Nuremberg confinava os negacionistas à insignificância. Mais de uma década depois, porém, quando Faurisson divulgou suas teses, a revisão histórica já encontrava recepção em relevantes círculos políticos extremistas. No rastro da Guerra dos Seis Dias (1967), a consolidação do Estado de Israel e a configuração do moderno nacionalismo palestino reativavam o antissemitismo na Europa, tanto entre os neofascistas quanto em correntes da esquerda radical.
Disfarçado sob a fantasia da pesquisa histórica, o negacionismo cumpria uma função política definida. O intelectual Roger Garaudy explicitou-a no título de um livro de 1996: "Os mitos fundadores da política israelense". Nele, o ex-comunista e ex-católico convertido ao Islã explicou que o desvendamento do "mito" do extermínio de seis milhões de judeus faria ruir o alicerce moral sobre o qual se ergueu Israel.
O revisionismo de Netanyahu é de tipo diferente, mas também serve a um fim político útil. Investindo numa mistura tóxica de oportunismo e amoralidade, o chefe de governo israelense pronunciou-se às vésperas de sua visita à Alemanha, uma nação que, por razões óbvias, interdita-se escrupulosamente de confrontar autoridades de Israel. No lugar de negar o Holocausto, ele cuidou de reescrever a narrativa histórica. "Hitler não queria, naquela época, exterminar os judeus, mas expeli-los", ensinou, antes de introduzir sua "descoberta". Husseini teria dito ao Führer que "se você os expulsar, todos eles virão para cá; queime-os!", plantando a semente do genocídio.
Os historiadores esclareceram, há muito, as relações entre Husseini e Hitler. Na moldura da guerra, o mufti buscava um acordo com a Alemanha para o estabelecimento de um Estado árabe na Palestina Britânica. A marcha rumo ao genocídio também foi minuciosamente exposta, apesar da queima dos arquivos pelo regime nazista. De fato, o Führer decidiu-se pelas câmaras de gás no outono de 1941, mas não inspirado por um clérigo de Jerusalém. A Solução Final derivou da descrença no triunfo militar, que se instalou na mente de Hitler com o fracasso da invasão da URSS. Os judeus deveriam perecer para pagar o sangue alemão derramado –e para evitar a vingança contra os nazistas e seus descendentes.
Na versão de Netanyahu, Husseini funciona como uma dupla metáfora. O fardo da culpa deve ser lançado sobre os ombros dos muçulmanos, em geral, e dos palestinos, em particular. Com isso, o primeiro-ministro conecta-se à onda de islamofobia difundida pela direita europeia na hora da crise dos refugiados e, simultaneamente, tenta deslegitimar a ideia da paz em dois Estados, no momento em que se ensaia mais um levante palestino. Ele opera no campo fértil do "choque de civilizações", apostando no confronto.
"Nós sustentamos nossa responsabilidade pelo Holocausto", replicou Angela Merkel. "Isso é ensinado nas escolas alemãs por um bom motivo: não deve ser esquecido jamais", completou seu porta-voz. É uma vergonha para Israel ter que ouvir essa verdade reiterada por um governo alemão.
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