Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.
Contratos e sinais
Para quem habitualmente não tem peninha de mendigo em sinal de trânsito, eu ter dado R$ 10 àquele e, pior, tê-lo chamado para receber o dinheiro, realmente foi insólito e despertou curiosidade: qual a diferença entre ele e os outros?
Foi a dos sinais emitidos e de contrato proposto. Em geral, os sinais que esses pedintes emitem são coitadistas: "Olhem minha miséria em desfile, sintam-se culpados pelo contraste, vocês burgueses no conforto de seus carros, e mitiguem sua culpa me dando algum dinheiro".
O contrato proposto é silencioso, você pode bem passar da irritação à culpa por ter tido raiva do farrapo humano ("lumpenproletariat", na expressão alemã de Marx: lumpen é farrapo; proletário é quem só vale pela prole que produz), aceitar a chantagem e pagar o resgate.
Claro, como em qualquer chantagem, uma vez pago o resgate está iniciado um processo que não tem fim: nenhuma chantagem cessa por pagamento, ela apenas é alimentada. Chantagens são contratos que só terminam se você não teme mais aquilo com que o chantageiam.
O pelotiqueiro que ganhou R$ 10, ao contrário, desfilou sua competência: ele manteve CINCO bolinhas no ar durante um minuto, em pé sobre um caixote. Os sinais emitidos são de alguém que investiu para fazer algo bem feito, e o fez. Como eu não aguento coisa feita mais ou menos "porque ninguém nota a diferença", o meritocrata aqui notou e premiou o resultado.
Outro ponto a favor dele é o contrato que propunha: "Eu faço meu espetáculo, você vê se lhe agrada, e a seu critério fica o prêmio".
Tanto o espetáculo quanto o contrato me agradaram.
É surpreendente como passa despercebido o fato de que estamos constantemente emitindo e recebendo sinais sociais que são propostas de contratos.
Contemple, por exemplo, o que você está lendo: falo claro; posiciono-me política e economicamente com transparência; quero convencer por argumentos lógicos; abomino chantagem e sentimento de culpa. Como arma ideológica, então...
São sinais sociais inequívocos e uma proposta contratual direta: se você e eu gostamos de democracia, estaremos unidos para repudiar manipulações do nosso pensamento, estaremos atentos para recusar os sinais sociais que nos chantageiem e que nos calem, ainda que escondidos no politicamente correto.
Experimente ler artigos, ouvir pessoas, ver o mundo com as seguintes perguntas em mente: que sinais estão sendo emitidos? Que mensagens eles contêm? Quais são os contratos que estão me propondo?
A nossa resistência, nesta guerra contra a irrelevância e o cinismo, precisa se dar a cada bife mais ou menos que nos servem, a cada serviço vagabundo que nos prestam (a psicanálise aí incluída), a cada idiotice que nos dizem.
Depois de um programa de TV em que estive, me mandaram por e-mail uma oferta de "mil curtidas por R$ 90 mensais". É, suspeite: curtidas podem ser falsas.
Resistamos! Quero ver cinco bolinhas no ar!
A propósito, Madame está se fingindo de morta para ver se a gente esquece, mas ela não foi ao ar por medo de panelaço, esse belo sinal de nossa resistência a seus sinais enlouquecedores. Ponto para nós.
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