É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.
Quando morre um ator morre um monte de gente
Cico Caseira nunca tinha feito teatro, reza a lenda, quando entrou no Tablado. Alguns dizem que ele morava na rua, outros dizem que entrou no teatro por engano. A professora -a própria Maria Clara Machado- pediu que todos ficassem bem à vontade. Cico tirou toda a roupa e ficou completamente nu.
Outros professores expulsariam o aluno de sala; Clara gostou tanto do aluno que o chamou pra dar aulas ali mesmo. Percebeu que não se tratava de um engraçadinho, mas o contrário disso. Uma pessoa que levava tudo muito a sério, menos ele mesmo. (Aviso aos que estiverem pensando em fechar o Tablado por motivos de nudez: quando virou professor, Cico só dava aulas vestido. Isto é, quase sempre. Quer dizer, na maior parte do tempo.)
Catarina Bessel/Folhapress |
Cico tava sempre com os olhos arregalados e as calças sujas de tinta. Quando se vestia, claro. Volta e meia descoloria o cabelo e ficava idêntico ao Louco da Turma da Mônica. Foi ele que a gente chamou pra estrear o "Z.É.", nossa peça de improvisação, e ele resolveu chamar a plateia inteira pro palco, e o espetáculo durou três horas e pouco. Cico não tinha limites.
Dava aulas no Nós do Morro, no Retiro dos Artistas, no Sated, no Tablado, na praça, onde quer que houvesse gente interessada, e sempre tinha. Formou uma multidão de pessoas em todos os cantos do Rio. Talvez tenha salvado uma dúzia, talvez uma centena, talvez milhares de pessoas. Nessa cidade cheia de bolhas e muros, Cico furou todas as bolhas –e nunca ficou em cima do muro.
Tava na rua contra o golpe, contra a redução da maioridade, contra a terceirização, contra coisas que eu não fazia ideia que poderiam acontecer, e tava na rua com o seu monólogo, e na pracinha, e na Fnac, e onde o chamassem. Tirava do bolso mil personagens, todos um pouco vesgos, todos um pouco lúcidos, todos muito descabelados. O Boi, o Burro, o Professor Golias, Doutor Uranus, Medeia, Pirata da Perna-de-Pau.
Cico morreu no sábado. Dia do aniversário do Tablado. Mesmo dia em que morreu o Bernardo Jablonski, seis anos atrás.
Só penso no final de "O Boi e o Burro no Caminho de Belém": "Nunca o céu esteve tão estrelado, tão perto". E o Burro perguntava: "Será que o mundo vai acabar, hein, Boi?" "Talvez comece um novo mundo", diz o Boi. "Haverá pastagens nesse novo mundo?", pergunta o Burro. "Sei não", responde o Boi.
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