É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.
Foi sem querer!
A polícia gaúcha indiciou na semana passada 16 pessoas pela tragédia na boate Kiss. Até aí tudo bem. Houve grande descaso para com a segurança por parte de diversos autores, além de falhas graves no sistema que deveria prevenir esse tipo de ocorrência, de modo que as responsabilidades ficam mesmo dispersas. Só que dos 16 indiciados, 9 respondem por homicídio com dolo eventual qualificado. Traduzindo o juridiquês: a polícia considerou que esses cidadãos, embora não tivessem a intenção expressa de assassinar os jovens estudantes, assumiram o ônus de fazê-lo, e por meio especialmente cruel, que é a asfixia (daí o "qualificado").
É evidente que as pessoas que, por ação ou omissão, tenham contribuído para o desastre que custou a vida de 241 jovens precisam responder criminalmente. Acho difícil, contudo, concordar com os raciocínios jurídicos dos delegados, que equiparam as atitudes dos membros da banda e os donos da boate às de assassinos que, com plena consciência de seus atos, emboscam suas vítimas ou envenenam criancinhas, condutas para as quais a lei reserva a pena máxima de até 30 anos.
Evidentemente, não espero que policiais e promotores ajam sempre como juízes. Eles são parte e a parte que acusa, é bom frisar. Até aprecio o papel de uma deformaçãozinha profissional. O agente da lei benevolente que acredita em tudo que o criminoso lhe diga é, se não inútil, pelo menos muito menos eficaz que o tira durão. Podemos tolerar esses desvios, já que o que importa é o resultado final e não a tramitação em cada fase do processo. Se os exageros da acusação forem contrabalançados por uma defesa competente e um magistrado equilibrado, podemos dizer que o sistema funcionou.
Ainda assim me incomoda a facilidade com que delegados e promotores passaram a recorrer aos tipos penais mais duros que conseguem encontrar para enquadrar os supostos autores de crimes que ganharam as manchetes de jornais. Posso estar sendo traído pela memória, mas o dolo eventual era uma figura utilizada de forma bem mais parcimoniosa até alguns anos atrás. O exagero até faria sentido em alguns Estados norte-americanos nos quais se chega a esses cargos através do voto popular, mas não no Brasil, onde esses postos são preenchidos por concurso e seus titulares gozam de estabilidade e inamovibilidade.
Deixemos, porém, de lado as preliminares e passemos ao ponto que deveria ser o fulcro desta coluna que são as questões filosóficas levantadas pela noção de dolo eventual.
"Foi sem querer". Essa frase é quase um "habeas corpus" universal. Nós a utilizamos constantemente para desculpar-nos por quase tudo, desde um simples esbarrão até ações mais complexas que acabam produzindo efeitos adversos, alguns até graves. Por alguma razão, nossas mentes foram construídas de forma a valorizar a intencionalidade, especialmente no que diz respeito às intuições morais.
O peso da intencionalidade fica claro nos experimentos mentais que envolvem dilemas éticos propostos nos anos 60 pela filósofa Philippa Foot. Analisemos dois exemplos.
Uma locomotiva desembestada vai atropelar cinco pessoas que caminham sobre a linha. Você tem a opção de acionar um dispositivo que faz com que o comboio mude de trilhos, e, neste caso, atinja um único passante. Você aciona a alavanca? Cerca de 90% das pessoas que respondem à pergunta cedem à razão utilitária e dizem que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.
Vamos agora a uma variante do problema. Você está em cima de uma ponte e avista um trem desenfreado prestes a abalroar cinco alegres caminhantes. A seu lado está um sujeito imenso, que, se lançado sobre os trilhos, teria corpo para parar a locomotiva, salvando os cinco passantes. Você atira o gordão ponte abaixo? Aqui, a maioria (90%) responde que não, embora, em termos puramente racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida inocente em troca de cinco.
Uma série de filósofos e cientistas, que inclui, entre outros, Judith Jarvis Thomson, Peter Unger, Frances Kamm, Shally Kagan, Marc Hauser, Jonathan Haidt, se debruçou sobre essas questões. Tiraram várias e interessantes conclusões, mas, no que nos concerne, uma das principais diferenças entre a primeira e a segunda situação é que, no caso, do sujeito obeso, o empurrão é inapelavelmente intencional, enquanto no desvio das linhas, o resultado da ação (a morte do passante) pode ser interpretado como um simples efeito colateral --um "foi sem querer"-- de ato que visava a salvar vidas.
Nem sempre o direito deu atenção a essas distinções. Do século 13 até o 18, animais domésticos e selvagens podiam ser julgados e condenados como seres humanos. Entre os bichos que mais frequentavam o banco dos réus estavam porcos, bois e cavalos.
A partir do século 18, entretanto, com a entrada em circulação das ideias iluministas, a intencionalidade passou a ser um ingrediente importante para a decisão de condenar ou não e para o cálculo da pena.
Não é que o fato de não ter desejado o fim escuse tudo. Especialmente quando as consequências são graves, como a morte de uma pessoa, dizer "foi sem querer" não é o bastante. O autor da ação pode ter agido com imprudência, imperícia ou negligência, caso em que incorreu num homicídio culposo. O Código Penal prevê de um a três anos de detenção contra seis a 20 anos para o homicídio doloso (em que há a intenção) ou 12 a 30 anos, se houver algum qualificador, como motivo fútil, torpe etc.
Isso, porém, ainda não dá conta de tudo. Como classificar o ato do sujeito que dá um tiro na perna do rival com o objetivo de assustá-lo, mas erra e acaba acertando o coração, levando-o à morte? O advogado de defesa tentará dizer que se trata de um caso de imperícia, já que o disparo não visava ao tórax, mas o delegado, a meu ver acertadamente, buscará enquadrar o caso como homicídio com dolo eventual. Embora a meta precípua não fosse matar, o atirador assumiu o risco de fazê-lo, já que tal desfecho era, senão provável, pelo menos possível.
Outras situações frequentemente tipificadas como dolo eventual quando envolvem mortes incluem dirigir embriagado, agredir uma pessoa para, por exemplo, estuprá-la, praticar roleta russa, atirar contra o inimigo, mas acertar um terceiro.
Aqui, nós entramos num cipoal. Se, para distinguir entre dolo e culpa, tínhamos de recorrer à noção de intencionalidade, que, pelo menos para os juristas, não admite muitos tons de cinza (ou o criminoso queria ou não queria o resultado), agora entramos num território que envolve também a probabilidade, a mais plúmbea das áreas da matemática.
Qual é um risco aceitável? 1%, 10%, 30%? Pior, a maioria dos humanos não anda com tabelas atuariais debaixo do braço, o que torna a estimativa um exercício quase totalmente subjetivo.
Se eu disparar uma arma de pressão carregada com sal grosso, munição com baixíssima probabilidade de matar um ser humano, contra os filhos do vizinho e, por uma infelicidade cósmica, o tiro atingir o globo ocular e daí o tronco cerebral da criança, matando-a, cometi um homicídio culposo ou com dolo eventual? E se os meninos estivessem roubando minha goiabeira? E se eu perpetrei tal ato apenas para divertir-me?
E o operário da companhia de gás que esquece de tapar o buraco que cavou, provocando um acidente fatal? Dolo eventual, culpa ou nenhuma das anteriores? Suponhamos que os incorrigíveis filhos do vizinho surrupiem a placa de mão única do poste da esquina, levando um infeliz a entrar na contramão e trombar de frente contra a perua escolar, matando 12 criancinhas. Não há dúvida de que devemos mandar esses diabretes para a Febem. Resta saber se o juiz de menores vai analisar sua conduta como vandalismo de patrimônio público ou homicídio.
Poderíamos tornar a discussão ainda mais abstrusa, perguntando, a exemplo de físicos e filósofos, se vivemos num universo determinístico, onde tudo teria uma causa anterior, eliminando assim o espaço do livre-arbítrio, ou probabilístico, no qual nada está irremediavelmente definido e o máximo que se pode fazer é calcular as chances deste ou daquele desfecho. Aqui, o próprio direito pode deixar de fazer sentido.
Não creio, entretanto, que precisemos ir tão longe. Minha intenção nesta coluna era apenas ressaltar que é necessário muita cautela e comedimento para não sucumbir, como certos delegados e promotores, à síndrome do dolo eventual. O advento da intencionalidade no direito é uma conquista humanitária. Não devemos sacrificar essa importante noção pelo desejo de fazer justiça. Ou logo estaremos julgando crianças, bebês e animais. Já fizemos isso antes.
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