É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.
Essências e embriões
SÃO PAULO - Conforme prometido, arrisco uma explicação de por que as pessoas não se entendem na discussão sobre o aborto.
O primeiro ponto a ressaltar é que a maioria dos debatedores parece argumentar de boa-fé. Os desentendimentos, creio, não se devem a falta de informação ou a falhas de raciocínio lógico, mas são fruto de diferenças no estilo cognitivo, mais especificamente na forma como cada um lida com o essencialismo, que é a tendência de nossa espécie de enxergar uma natureza oculta nas coisas.
Provavelmente, o hábito se fixou porque favorece a sobrevivência. Nossa obsessão para com substâncias nos leva a ser observadores detalhistas, que tentam ler em pistas externas a verdadeira essência dos objetos. Se você for um botânico superficial, levará a planta venenosa em vez do remédio para casa. Em algum grau, o essencialismo é real. O próprio sucesso das ciências indica que existem de fato realidades não evidentes a serem descobertas no mundo.
Há, entretanto, efeitos colaterais. Enxergamos propriedades invisíveis mesmo onde elas não existem. É por acreditar que diferenças superficiais devem refletir também diferenças essenciais que temos fenômenos como o racismo. Desenvolvemos também uma lista telefônica de crendices, como astrologia, homeopatia, religião.
Em minha modesta opinião, enquanto nós, pró-abortistas, vemos o embrião em seus estágios iniciais de desenvolvimento como um simples amontoado de células, os antiabortistas, mais sensíveis ao essencialismo, nele identificam uma vida humana. Para eles, não há diferença entre abortar e assassinar, o que explica as reações por vezes viscerais.
Para dirimir a polêmica do aborto, precisaríamos de uma régua que definisse com precisão em que ponto o essencialismo deixa de captar características reais das coisas para converter-se numa ilusão cognitiva. Em minha opinião, existem muito menos essências do que imaginamos.
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