É repórter especial. Na Folha desde 1992, foi repórter, editor, correspondente, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasília. Escreve às quartas.
Os vivos e os mortos
BRASÍLIA - Ritos funerários acompanham a humanidade desde sua aurora. Há indícios de que eram praticados por neandertais e seus primos africanos, atingiram status central na cultura do Egito antigo e marcam praticamente toda sociedade organizada conhecida.
Entidades como a Cruz Vermelha surgiram não só para ajudar soldados feridos, mas também para assegurar o enterro digno dos caídos. Por fim, em todas as crenças há uma atenção especial aos detalhes do funeral e rigores específicos no tratamento dos cadáveres.
Norteia todo esse ritualismo, considerações filosóficas à parte, a necessidade primária de parentes e amigos do morto de simbolizar a perda do ente querido, de seguir a vida.
Sem corpo, o processo de luto pode demorar de forma indefinida. É o drama, por exemplo, dos parentes de vítimas de acidentes aéreos sobre o mar em que os mortos não são localizados.
Por isso, ultrapassa o limite da indignação nossa de cada dia o fato revelado ontem por esta Folha, de que o Estado de São Paulo mandou para a vala comum cerca de 3.000 pessoas com identificação possível, segundo uma investigação feita pelo Ministério Público.
O governo ignora famílias pendurado na desculpa cretina de que não tem estrutura para localizá-las e em uma lei que data de 1993.
Há o agravante burocrático. A população não costuma procurar seus desaparecidos no Serviço de Verificação de Óbitos, e sim no Instituto Médico Legal.
Parece relativamente óbvio que os diversos cadastros sobre pessoas mortas têm de ser unificados ou, ao menos, conversar entre si de alguma forma. No fim, a conta fica para pessoas geralmente em desespero.
Tudo isso é inadmissível, cruel e tão dolorosamente representativo do nosso estágio civilizatório. Se um país trata assim seus mortos, imagine o que faz com os vivos.
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