Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
A dança dos nomes
Perdi os meus contatos. Todos. Eis a história: depois de resistência homérica, comprei um celular que me ultrapassa em beleza, inteligência e capacidade de reflexão. Isso não é difícil?
Fato. Mas o bicho exagera. Para ser perfeito, só lhe faltava cozinhar para mim. Talvez cozinhe. Talvez exista dentro dele um aplicativo tipo Bimby para doces e salgados. Prometo investigar.
Acontece que metade das funcionalidades são incompreensíveis para um Neandertal tecnológico como eu. Resultado: com os meus dedos grotescamente hominídeos, mexi em botões que não devia e provoquei uma explosão nuclear na minha lista pessoal com quase 15 anos de história.
Suspiros. Sou como aqueles náufragos que subitamente aportam a uma ilha deserta e não têm nada que os salve. Nem sequer uma mensagem dentro da garrafa. Porque não há garrafa.
Duas hipóteses. Esperar que o mundo se lembre que eu existo e reconstruir a lista, chamada a chamada, mensagem a mensagem, à medida que elas vão chegando à minha ilha.
Ou tentar construir uma jangada e deixar a ilha para trás. Optei pela segunda hipótese. Como? Regressando ao velho celular e anotando, com lapiseira e papel, os contatos que a sua memória jurássica guardou. Para os poder transportar para o novo.
Haverá quem diga que não é preciso tanto trabalho -anotar primeiro (à mão) e gravar no novo celular (também à mão). É possível usar um chip, e bla bla bla. Esqueça, leitor. Comigo, é lapiseira e papel.
Até porque existem vantagens no exercício. A primeira delas está na contemplação da futilidade. Em 15 anos, carregamos gente a mais. Não vale a pena. Metade dos nomes não toca nenhuma sineta, não evoca nenhum rosto. Nem sequer uma memória difusa. São nomes de Páginas Amarelas -e eu, muito obrigado, já tenho Páginas Amarelas.
São os primeiros a ir pela borda fora. Mas as surpresas acontecem com a segunda metade da lista. Hoje, Junho de 2013, percebo que há nomes que perderam os sobrenomes. E há nomes que os ganharam. Como?
Explico. Há nomes que perderam os sobrenomes porque se tornaram próximos e familiares. E as pessoas íntimas não têm nome de família para nós.
E o inverso também sucedeu: amigos que se revelaram meros conhecidos e que voltaram a ter nomes completos. São como os vizinhos do prédio -o sr. Silva, a sra. Fernandes- que cumprimentamos no bairro e nada mais. A dança dos nomes é uma forma genuína de reconhecer as prioridades.
Por último, há números que já não existem porque há nomes que também não. Dias atrás, assistindo a uma entrevista com um político lusitano, ele dizia que havia momentos em que sentia vontade de falar com o pai e tinha o reflexo infinitesimal de o procurar ainda na lista do celular. Só depois se lembrava que o pai já não estava entre os vivos.
Seria bom. Sim, seria bom ligar para certos números que ficaram cá em baixo e alguém atender lá em cima. Uma secretária angelical, digamos assim, que diria com voz suave: "Só um momento, vou passar ao seu pai". Apagar esses números é talvez uma das formas mais tangíveis de despedida que conheço.
Contas feitas, o que resta? Pouco. O essencial. E, resgatando esse pouco que é essencial, deixamos mais espaço para quem deve chegar.
Agora mesmo, no momento em que bato essas linhas, há um número desconhecido que faz tremer o meu novo celular temperamental. Quem será? Quem não será? Alguém que eu esqueci de salvar? Ou a primeira surpresa desta manhã?
Com a "devida venia" ao leitor, vou atender e volto já já.
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