Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Selvagens e geniais
Sou capaz de tolerar pessoas sem maneiras. Desde que cumpram um requisito básico: alguma genialidade para mostrar. Quando não existe talento que justifique uma conduta fora das marcas, o resultado é penoso --e distância é o caminho a seguir.
Anos atrás, lendo uma autobiografia da actriz Claire Bloom ("Leaving a Doll's House: A Memoir"), lembro-me de encontrar algumas páginas demolidoras sobre o escritor Philip Roth, que foi casado com ela. Resumo?
Parece que o homem tinha a regularidade mental das bossas de um camelo. E um narcisismo patológico que ia lançando a própria Claire Bloom no hospício. Lamentável? Para a mulher, acredito.
Mas com as rudezas de Roth posso eu bem quando sei que ele deixou cinco ou seis livros que definem a literatura do nosso tempo ("Pastoral Americana" à cabeça).
E quem diz Roth, diz Orson Welles. Fui aluno relapso de Welles: na clássica luta entre ele e Laurence Olivier, inclinava-me sem imaginação para o segundo. Que erro. Em inteligência e perversidade, Orson Welles faz de Laurence Olivier um menino de jardim escola.
Por isso aplaudo a pré-publicação das conversas informais que Orson Welles manteve com o amigo e diretor Henry Jaglom, uma das sensações aqui na Inglaterra.
AFP | ||
O diretor Orson Welles, de 'Cidadão Kane', conversas com Henry Jaglom foram pré-publicadas na Inglaterra |
O jornal "The Observer" tem publicado as melhores partes, embora seja mais correcto dizer "as piores partes": de 1983 a 1985, Welles foi descendo livremente o sarrafo sobre colegas de profissão e o resultado é um festival de rudeza só acessível, e só perdoável, aos verdadeiramente grandes.
Exemplos? Vários. Para começar, Laurence Olivier é "estúpido" e o seu "King Lear" para a BBC um espectáculo penoso de ver. Concordo, embora acrescente: Olivier já estava gravemente doente quando se entregou ao televisivo Lear. Não desculpa nada, mas explica alguma coisa.
De resto, Spencer Tracy era "detestável". James Stewart era "um péssimo actor". E sobre o rosto de Bette Davis, o venerável Orson Welles preferia nem olhar.
Mas o melhor momento das conversas, invariavelmente gravadas em restaurantes, acontece quando Richard Burton se aproxima da mesa e pergunta a Orson Welles se poderia apresentar-lhe a famosíssima mulher, desejosa em conhecê-lo.
Resposta de Welles devidamente registada: "Não. Como você vê, eu estou no meio do almoço." Parece que Burton regressou ao seu lugar sem pronunciar palavra. Welles comentou: "Era um bom ator. Agora é uma anedota, casado com uma celebridade."
Sim, leitor: recusar Elizabeth Taylor é um crime de lesa-majestade. E, honestamente, quem em juízo perfeito acredita que Spencer Tracy ou James Stewart eram casos perdidos para a arte? Só o comentário sobre Richard Burton revela que Welles, às vezes, sabia do que falava.
E falava como só o grande talento permite: de forma rude, aberta, injusta, desmesurada. Um selvagem, sem dúvida, que nos deu o melhor Shakespeare em cinema e três obras-primas antes de fazer 30 anos.
Moral da história?
Leitor, seja rude à vontade. Mas, para não parecer patético, é importante ter um "Cidadão Kane" primeiro para mostrar.
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