Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Diário de Oxford - Capítulo 9
Gosto de me sentar num pub e ver quem chega. Ou, para ser mais rigoroso, quem parte. Explico: nos pubs ingleses, ninguém vem servir à mesa. É preciso levantar o "derrière", caminhar até ao balcão, fazer o pedido e pagar.
Depois, trazem-se as bebidas para a mesa e, nos lugares mais afortunados, alguém da casa acabará por trazer a comida para nós.
Fatalmente, nem todos os turistas conhecem a bizarria. O que significa que eles chegam, sentam-se, aguardam (10 minutos, 20, 30) e depois, indignados com a qualidade do serviço, abandonam o pub com insultos na língua de origem.
Essa, aliás, é a melhor forma de conseguir mesa quando o pub parece lotado: olhar em volta e ver se há turistas sentados, à espera de serem servidos. Nunca falha.
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Oxford é uma universidade medieval. O que significa que existem algumas tradições medievais que podem confundir certos espíritos modernos.
Um exemplo: quando o aluno vai discutir com a banca a sua tese, o traje é conhecido - "gown", laço, camisa branca. Mas um colega contava-me que existe outra possibilidade: chegar no dia sacramental e aparecer perante o júri vestido de cavaleiro. Tradução: armadura posta, capa, desconheço se cavalo.
A bizarria divertiu-me. Mas uma história divertiu-me ainda mais. Porque já aconteceu. Recentemente. O aluno apareceu no exame como se tivesse saído de um filme dos Monty Python. Os examinadores, depois do choque inicial, começaram as perguntas.
O aluno recusou responder a elas. Ainda segundo os mesmos estatutos, o cavaleiro tem direito a uma caneca de cerveja providenciada pelos examinadores. Sem cerveja, o protocolo estava ferido de morte.
Pausa nos trabalhos. O júri reuniu. E deliberou, após consulta minuciosa do regulamento: sim, faltava a caneca de cerveja; mas o exame não poderia ser realizado porque o cavaleiro também desrespeitara os estatutos.
Ele esquecera-se da espada. E, sem espada, o protocolo também estava ferido de morte. Moral da história?
O cavaleiro regressou ao seu castelo - sem espada e, claro, sem o diploma de doutor. Mas, em contrapartida, inscreveu o seu nome e a sua lenda na história de uma universidade com quase mil anos de existência.
O resultado do duelo parece-me justo.
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Em finais do século 19, o jornalista Theodor Herzl (1860 - 1904) estava em Paris para assistir ao julgamento de Alfred Dreyfus. O capitão Dreyfus era acusado de passar informações militares para os alemães. A França, ainda traumatizada pela derrota frente à Prússia em 1871, exibia um ódio a Dreyfus que deixou o jornalista Herzl abismado.
Como era possível que o país que concedera emancipação cívica aos judeus do gueto fosse o mesmo que pedia agora a condenação de Dreyfus - um homem inocente - e a morte de todos os judeus - como se lia nos cartazes exibidos à porta do tribunal?
Verdade que o caso Dreyfus dividiu o país e muitos intelectuais ilustres, com Zola à cabeça, defenderam a inocência do capitão. Mas Herzl, que não era propriamente um "sionista" por se considerar plenamente integrado na Europa, chegou à conclusão glacial: os judeus só estariam em segurança se conseguissem um "lar nacional judaico". A concretização desse lar foi a tarefa da restante (e breve) vida de Herzl.
É impossível não lembrar essa história quando assistimos, dia após dia, ao ódio antissemita que cresce na Europa. Ao ódio e às matanças que ele promove. Aconteceu em Paris. Aconteceu agora em Copenhaga: o assassino, depois de metralhar um café onde se discutia a liberdade de expressão, entendeu que o serviço só ficaria completo com a visita a uma sinagoga, onde abateu mais um infeliz.
Perante isto, o premiê Benjamin Netanyahu, para horror das consciências finas do Ocidente (as mesmas que gostam de comparar Gaza com Auschwitz e os israelenses com os nazistas), exortou os judeus europeus a emigrarem para Israel.
Não sei se o apelo de Netanyahu é "alarmista" e "excessivo". Mas qualquer judeu europeu com neurónios só pode agradecer a Herzl a ideia que ele teve de construir o bote que o pode salvar de um novo naufrágio.
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Foram anos e anos a ler a "Spectator" e o "Telegraph". Desconfio que essas peregrinações acabaram. Ou, pelo menos, serão praticadas com maior parcimónia.
O "Telegraph" lê-se em 10 minutos (e, aos domingos, em 15). Motivos? Os óbvios: não há um colunista, um repórter, um crítico que justifique o tempo e o dinheiro.
O mesmo para a velhinha "Spectator", que ainda por cima comete o ultraje de dar guarida a Rod Liddle - um hino à boçalidade e uma cópia reles do (excelente) Mark Steyn. O que resta, então?
Sim, o "Sunday Times" é preferível ao "Sunday Telegraph" (mesmo com Rod Liddle, que também aparece aos domingos no jornal). Mas a melhor colheita das rotativas britânicas é, sem surpresa, a revista "The Oldie", dirigida por Alexander Chancellor e só superficialmente vocacionada para a "Terceira Idade".
Nas páginas de publicidade, lá encontramos casas de repouso; aparelhos auditivos; calçado ortopédico; e, juro pela minha saúde, o último grito em cadeira de rodas.
Mas depois temos artigos superiormente escritos (e superiormente hilariantes) sobre as pequenas loucuras da vida actual.
As secções onde aparecem esses textos têm títulos que são todo um programa: "Still with us" ("ainda com a gente", retratos biográficos de personalidades que se mantêm vivas); "Living Hell" ("puro inferno", normalmente devotado à indústria do turismo); e, naturalmente, o heróico "Notes from the Sofa" ("notas do sofá", reflexões sobre tudo o que mexe, o que obviamente exclui o autor das notas).
Para concluir, Mary Kenny responde a perguntas dos leitores, explicando, entre outros mimos, por que motivo a demência não tem que ser o fim do mundo.
Ler a "The Oldie" é celebrar a velha excentricidade dos nativos, que desapareceu das publicações "mainstream", sequestradas pelas sereias da "respeitabilidade".
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Anos atrás, entrei no refeitório do colégio, confrontei-me com um impressionante pedaço de carne e perguntei ao chefe de serviço: "O que é isso?"
Ele, impassível, respondeu: "Deer" ("veado"). Eu, com um esgar de náusea, ecoei a resposta dele. O chefe refinou a explicação: "Yes, Sir, deer. Bambi."
Foi tudo o que bastou para que a minha infância se despenhasse em chamas. Para que o trauma fosse mais completo, só faltava mesmo que a carne fosse da mãe do Bambi.
Regresso ao mesmo refeitório e o chefe de agora, um brasileiro que responde sempre em português à minha pergunta de cortesia ("Como vão as coisas?"; "Melhor que vaca na Índia", diz ele), aconselha os pratos mais gostosos e, na hora de servir, capricha na dose.
Não é caso único. Na pastelaria onde começo os meus dias, a dona (portuguesa) também gosta de reforçar o meu café da manhã com alguns extras gastronómicos que não aparecem na conta.
Da próxima vez que me perguntarem o que é isso de "lusofonia", prometo lembrar o filé extra do brasileiro e o pastel de nata grátis da portuguesa. Lusofonia é máfia, camaradas. Lusofonia é falar literalmente de barriga cheia.
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Sou insuspeito de simpatias jihadistas. Mas há um debate nos jornais ingleses que parece raiar a mais pura loucura. A propósito de "American Sniper", o filme medianíssimo de Clint Eastwood sobre Chris Kyle, o mais mortífero "sniper" da história militar.
Os ingleses, melindrados com a titulatura heróica, dizem que não. E avançam com um "sniper" nativo, cujo nome não foi revelado (por motivos de segurança), que só num dia matou 90 rebeldes do Taliban no
Afeganistão. Se o "sniper" americano matou 160 inimigos, o inglês matou 173. O inglês leva a copa.
Facto: guerra é guerra e não choro propriamente a morte de terroristas. Mas seguindo a mais rigorosa filosofia vitoriana, aconselho virtudes públicas e vícios privados. Que é como quem diz: ninguém precisa de saber "cá fora" como as salsichas são feitas "lá dentro". Há campeonatos macabros que são francamente indigestos.
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Viagem a Portugal para visitar a família. Sento-me junto a uma moça inglesa que, na hora da decolagem, aperta a minha mão direita com inusitada força - e familiaridade. Primeiro pensamento: alguém anda a ler "50 tons de cinza".
Segundo pensamento (após confirmação empírica): a moça está pálida, banhada em suor e repete o seu mantra de relaxamento - "vamos morrer, vamos morrer" - que exige intervenção imediata.
Aproximo-me dela e digo-lhe: "Pois vamos, minha querida, mas não hoje."
Ela olha para mim com a estranheza de uma sonâmbula que desperta e depois solta uma risada ao ver a minha mão roxa - e o avião já entre as nuvens.
Como diria o dr. Johnson, quem está cansado do humor, está cansado da vida.
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