Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
O horror da vaidade
Foram 66 mortos em 3 países distintos –na França, no Kuait, na Tunísia. O terrorismo islamita está bem e recomenda-se.
Mas um pormenor anedótico (digamos assim) prendeu a minha atenção no caso francês: o assassino, depois de decapitar o empresário, tirou uma "selfie" com a cabeça da vítima. Depois, enviou a proeza para um celular canadense.
Eis a doença da vaidade levada até às últimas consequências: não basta matar; é preciso exibir o troféu e, de preferência, sorrir na foto com ele.
Desconfio, aliás, que uma parte considerável dos atentados terroristas que se espalham pelo mundo tem a vaidade como motor principal. Como se o horror do crime fosse o passaporte mais eficaz para que o terrorista possa sair do anonimato onde miseravelmente vive e inscrever o nome e o rosto na memória coletiva.
Tirar uma "selfie" e, quem sabe, partilhá-la nas redes sociais é apenas a conclusão lógica dessa busca insana por reconhecimento.
Mas se assim é com terroristas, que dizer das vítimas do terrorismo? No resort da Tunísia onde foram mortas 38 pessoas, muitos turistas resolveram deixar o país porque as férias, enfim, ficaram um pouco estragadas. Mas o "The Sunday Telegraph" informa que muitos veraneantes decidiram ficar.
Para uns, porque as férias já estavam pagas. Para outros, porque partir seria uma rendição covarde. E depois existiram aqueles turistas que, ficando na Tunísia, passaram os dias a tirar "selfies" na praia do massacre.
Alguns, conta o jornal inglês, fizeram questão de imortalizar os rostos com a inevitável foto junto às cadeiras onde foram abatidos os outros 38. Uma dúvida: o que tencionam esses turistas fazer com os retratos? Partilhar no Facebook com a legenda "olha eu no lugar onde mataram a portuguesa"? Mistério.
Não, não pretendo colocar no mesmo degrau de desumanidade quem mata e quem tira autorretratos nos lugares do crime. Mas é impossível não vislumbrar no terrorista francês e nos turistas das "selfies" algumas vagas semelhanças: o mesmo narcisismo mentecapto; a mesma atrofia moral; a mesma superficialidade quando o assunto é a vida humana.
Para que a sintonia fosse perfeita, só faltava que o terrorista francês e os turistas tunisinos trocassem as "selfies" uns dos outros. E por que não? Como dizia um comercial antigo da Kodak, há momentos inesquecíveis para mais tarde recordar.
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