Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Como governar com sabedoria quando o ruído das massas é totalitário?
Será que a internet está a matar a democracia? Vyacheslav W. Polonski, um acadêmico da Universidade de Oxford, faz essa pergunta na revista "Newsweek". E oferece dois argumentos a respeito que desaguam em águas tenebrosas.
Primeiro: a internet oferece palco político para os mais motivados (e impreparados). Antigamente, o cidadão revoltado podia ter as suas opiniões sobre os assuntos do mundo. Mas, tirando o boteco, ou o bairro, ou até o jornal do bairro, essas opiniões nasciam e morriam no anonimato.
Hoje, é possível arregimentar dezenas, ou centenas, ou milhares de "seguidores" que rapidamente espalham a mensagem por dezenas, ou centenas, ou milhares de novos "seguidores". Quanto mais radical a mensagem, maior será o sucesso cibernauta.
Mas a internet não é apenas um paraíso para os politicamente motivados (e impreparados). Ela tende a radicalizar qualquer opinião sobre qualquer assunto.
Exemplo: se eu não tenho grande admiração por Barack Obama, começo por expressar esse estado de espírito. Rapidamente, os filtros próprios das redes sociais permitem que almas gémeas se juntem aos meus lamentos com novos lamentos. A opinião inicial vai crescendo em extremismo –até Obama ser o demônio em pessoa.
A ideia de que as redes sociais são uma espécie de "ágora moderno", onde existem discussões mais flexíveis e pluralistas, não passa de uma fantasia. A internet não cria debate. Ela cria trincheiras entre exércitos inimigos.
Concordo com Vyacheslav Polonski. Claro que, para sermos justos com a fauna virtual, existem radicalismo e radicalismos. Se as redes sociais funcionam como mecanismo de pressão –e ação– contra governos autoritários e corruptos, eu aplaudo e agradeço.
O problema é que os relógios parados só estão certos duas vezes por dia. O radicalismo das restantes horas pode abarcar causas racistas, populistas, odiosas e obviamente anti-democráticas que acabam tendo uma influência sobre a vida política de um país –e sobre a conduta dos seus líderes– que seria impensável em tempos mais "civilizados".
Aliás, nada disso constitui novidade na história da democracia liberal. O liberalismo, na sua gênese, apresentou-se como um projeto anti-autoritário. Se ninguém estava acima da lei, isso era válido para o monarca ou para qualquer elite "iluminada" (religiosa, hereditária etc.). A obra de John Locke testemunha essa preocupação perpétua de evitar a tirania de um homem, ou de um grupo de homens.
Só que os liberais não temiam apenas o "direito divino" dos reis; também temiam o "direito divino" das multidões. Basta ler os "Founding Fathers" dos Estados Unidos, a começar por James Madison nos "Federalist Papers", para vislumbrar esse temor: o dia em que uma "facção" tomaria o poder, impondo a sua vontade majoritária.
As democracias liberais são democracias "representativas" precisamente para evitar o poder incontrolado das massas. Teoricamente, elegemos os nossos representantes para que eles possam decidir, sem o calor da excitação momentânea, os assuntos da República.
As redes sociais viciam essa lógica democrática. Primeiro, ao concederem um poder incontrolável à "sabedoria" das multidões. E, depois, ao submeterem os representantes à pressão dessa "sabedoria".
Posso estar errado. Mas o grande tema político do século 21 será precisamente esse: como governar com moderação e sageza quando o ruído das massas se tornou totalitário?
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