Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.
Mareado
Turista tem que ser feliz. E, não sendo, não pode jamais admitir para ninguém –muito menos para si próprio, depois de tanto dinheiro, tempo e sonho investido na viagem. As férias têm que ser paradisíacas. Imagine um passeio de barco para mergulhar em águas cristalinas e refrescantes, seja no Mediterrâneo ou no Caribe, seja no Havaí ou na Bahia. O que pode ser melhor que isso?
Bem, melhor que isso, só isso –se você não for acometido por um enjoo terrível; se cada onda não funcionar como uma alavanca querendo ejetar suas tripas para fora; e se você não estiver dividido entre o mal-estar torturante (preferindo morrer afogado a continuar assim "feliz") e a vergonha de confessar aos alegres companheiros de viagem que está em vias de estragar o passeio ao se desfazer em poças de bílis e de restos dilacerados do café da manhã.
Nunca me aconteceu de enjoar em navios gigantescos de cruzeiro, possivelmente por ter singrado mares já dantes domados por calmarias cabralinas. Nem em estáveis catamarãs, duplamente apoiados para poupar estômagos sensíveis, ou em lentas traineiras que cruzam as águas com mansa paciência.
Nem mesmo nos barquinhos a motor que atravessam a praia rumo às ilhas da Barra do Sahy (SP), perto demais para produzir maiores consequências.
Mas, em algumas lanchas maiores e mais velozes, em mares encrespados, o enjoo surgiu e golpeou forte... Em Angra dos Reis, em Lima, no Peru, em Punta de Mita, no México, na costa paulista, nas muitas horas (toda uma noite) que nos tomou o percurso do Guarujá até a beirada da plataforma continental para uma pesca de atum (não encontramos nenhum, por sinal).
Imagino que existam outras tribos que sofram distúrbios parecidos em seus passeios –o cara que sobe na torre Eiffel com os amigos, esquecendo que sofre de vertigens, o que vai com a namorada para um balão na Capadócia e lembra, só lá em cima, que tem pânico de altura, o curioso que visita os esgotos de Paris e só então percebe que sofre de claustrofobia, ou quem só descobre que tem medo de avião depois da decolagem, em altura de cruzeiro.
É como a turma dos que ficam mareados. Mesmo que, para alguns, não seja sempre, aqui e ali o desastre aparece. E fica o sujeito entupido de Dramin (isso quando, por obra da providência, alguma santa alma por acaso tenha algum comprimido salvador), orando em voz baixa pelo fim do suplício (e se perguntando a cada três minutos, tal como criança em viagem, "não chegou ainda???").
Como num delírio, enquanto controla os espasmos que ameaçam virá-lo do avesso e macular o límpido espelho d'água que nasceu para ser admirado –e não feito de latrina–, ele fica torcendo pra ver algo de poético no balanço do mar ou para se concentrar misticamente no horizonte, que é para onde lhe dizem que ele deve fixar o olhar se quiser ficar um pouco melhor.
Pelo canto do olho percebe que, no meio da euforia da turma, há mais alguém impermeável à algazarra infantil daquela gente imatura, imerso num mundo contemplativo, pensativo, filosófico. Sei, sei, filosofia nada... É só mais um infeliz calculando em quantos segundos fará, se preciso, o percurso até o banheiro (se houver), ou pelo menos até aquele parapeito a estibordo.
Ante alguma pergunta do feliz viajante ao lado, a resposta é um sorriso, tão amarelo quanto a tez de uma pele subitamente imune aos efeitos do sol, e que tenta disfarçar o suplício e não estragar o passeio alheio. Por dentro, só consegue sonhar com terra firme. Jurando que da próxima vez em que for deixá-la, será por ar, nunca mais por mar.
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