Josimar Melo é crítico gastronômico, autor do 'Guia Josimar' de restaurantes, bares e serviços de SP. Escreve às quintas, a cada duas semanas.
Vejo a sombra, no futuro, de tempos que deveriam estar passados
Joao Ramos/Bahiatursa/Divulgação | ||
Farol da Barra, em Salvador |
Às vezes, perdido em delírios inconsequentes, penso um pouco na relatividade do passar do tempo em nossos corpos e mentes –e ainda, em nossa história, ou na do nosso universo. Recordo-me então de um breve relance das diferentes noções do tempo, num choque delicado de dois mundos, quando ainda era um jovem cabeludo em minha primeira viagem à Bahia.
Pós-adolescente acelerado no ritmo alucinante de São Paulo, decidi conhecer Salvador. Parecia o lugar ideal para relaxar por alguns dias, em outra vibração, mais calma. Não via a hora de largar-me na areia, imóvel, por horas a fio, na praia do porto da Barra, perto de onde eu ficaria hospedado.
Sabia que por ali sentiria as vibrações do instigante movimento musical que ainda fermentava (lenta fermentação, claro, como hoje é moda da culinária, e na Bahia sempre foi de lei) daqueles anos pós-Tropicália. Mas à cultura dedicaria as noites, não o dia, que em minha fantasia estaria tomado por nada fazer, a não ser pelo estranho afazer (e que, no entanto, à época me fascinava) de simplesmente torrar a pele ao sol.
Cheguei a Salvador à tarde. Excitado pela ideia de começar minha estadia contemplando o famoso pôr do sol no porto da Barra, mal me instalei e comecei a descer a avenida Sete de Setembro, deixando-me levar pela gravidade até o mar.
Já avistando o famoso farol da Barra, respirei fundo o ar marinho, refreei a velocidade que a ladeira impunha aos meus passos e passei para a calçada que ladeava a areia. Olhei para o horizonte, esperando os espasmos do dia, enquanto me arrastava lentamente em meu papel de turista relaxado.
Até que caí do meu delírio quando ouvi uma garota se dirigir a mim, perguntando naquele delicioso sotaque cantado: "Ó paulista, aonde você vai com tanta pressa, correndo desse jeito?!". E me pediu um cigarro.
Atônito, demorei a crer que duas garotas sorridentes, sentadas languidamente na amurada, desenhando as belas silhuetas contra o tranquilo céu tropical, tinham lido toda a minha natureza, desmascarada naquela simples pergunta.
Certo de que passeava lenta e tranquilamente à beira-mar, tive que admitir que, sem ter a menor ideia, eu estava disparando em ritmo de avenida São João.
Duas noções de tempo. Que nos assaltam em momentos variados –por exemplo, quando voltamos do Oriente e aqui chegamos perplexos por estarmos um dia antes da partida, situação análoga à vivida pelo náufrago de Umberto Eco que, preso num navio, mirava adiante, separada por um meridiano imaginário, a ilha que, embora poucos metros a frente, estava estacionada no dia anterior.
Einstein explicou, a quem consegue entender (não é o meu caso), que duas pessoas iguais poderiam viver diferentes passagens do tempo, desde que uma delas fosse rápida o suficiente para se deslocar a uma velocidade próxima à da luz; mas, curiosamente, esta que se deslocaria correndo, no ritmo paulistano, veria o tempo passar mais devagar do que a outra, que a estaria esperando no ritmo baiano, mas envelhecendo mais rápido.
Daquele meu encontro na Bahia, quem –as lânguidas garotas ou o sôfrego paulistano– estará mais velho hoje? Especulação banal cujas divertidas conjecturas poderiam preencher ao menos mais um par de crônicas.
Mas temo que, olhando em volta, a resposta seja mais ríspida e sem margem a especulação. As meninas e eu devemos estar todos enfrentando a mesma decrepitude. Basta ver o noticiário: nada rejuvenesce nem anda para a frente.
A censura às artes nos faz regredir décadas; as "novas" leis trabalhistas nos lançam séculos para trás, à lei da selva da revolução industrial; a legislação relativa ao trabalho escravo nos remete a tempos de tenebrosas galés. Na relatividade do tempo, ele também pode andar para trás.
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