Jornalista, mestre em filosofia e autor do "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", entre outros. Escreve às quartas.
Monstros de histórias de terror invadiram nosso imaginário político
"Usam dinheiro público para erotizar nossas crianças!"
"Querem legalizar a pedofilia!"
"Defendem portarias que autorizam a volta dos grilhões e chicotes em pleno século 21!"
A julgar por notícias e colunas de jornal, posts no Facebook e declarações de políticos e ativistas, parece que criaturas facinorosas estão prestes a dominar o Brasil. Nosso imaginário político está impregnado de vilões importados do cinema que não teriam outra intenção senão espalhar o mal sobre a Terra.
Em "O Senhor dos Anéis", os orcs eram os soldados das trevas; nas ficções da esquerda, esse papel cabe aos famigerados ruralistas. Já na temporada de 2017 da direita, o novo vilão é o artista pedófilo.
Muita gente de esquerda acredita que "está em curso no Brasil uma ofensiva conservadora fundamentalista antidireitos das mulheres". Um professor da USP afirmou que os deputados, ao aprovarem a reforma trabalhista, teriam votado para "mandar a classe trabalhadora aos porões de fábricas inglesas do século 19".
Já a turma da direita acha que todos seus adversários pretendem transformar o Brasil numa Venezuela e que o bilionário George Soros "financia a degradação moral e a destruição das bases da sociedade". O mesmo Soros que bancou movimentos de oposição a ditaduras comunistas nos anos 1980.
Claro que há nessas visões uma estratégia consciente de vilanizar o adversário e causar alarde. Mas não é só isso. É uma delícia tratar rivais como monstros desprovidos de sensatez ou boas intenções. A vida fica muito mais fácil assim.
Escolhemos um espantalho, um personagem repugnante (a grã-fina que reclama de pobres na fila do supermercado, a integrante do movimento negro que quer exterminar os brancos) e tomamos a parte pelo todo, como se a pessoa representasse todos aqueles de quem discordamos.
O costume de desumanizar o adversário político é recorrente e perigoso. Na Revolução Francesa, por exemplo, a execução de Maria Antonieta sucedeu um processo contínuo de desumanização, que envolveu panfletos com retratos animalescos da rainha, apelidos ("fúria uterina", "a senhora Déficit", "a austríaca") e histórias revoltantes de perversão e futilidade. Como a da frase "Se não têm pão, que comam brioches", uma das mais antigas fake news da história.
Na vida real, rainhas malignas e psicopatas até existem, mas não representam ninguém. A recente portaria do Ministério do Trabalho não foi criada por latifundiários frios, mesquinhos e calculistas, mas por gente que apoia uma definição mais precisa de trabalho escravo para evitar acusações injustas. Não são os melhores patrões do mundo, mas devem ter horror à escravidão.
Do mesmo modo, não havia nada grave no fato de uma criança, acompanhada pela mãe, tocar o pé de um adulto nu durante uma performance artística sem nenhuma conotação sexual. Não são os melhores artistas do mundo, mas devem ter horror à pedofilia.
É melhor deixar monstros quietos nos livros e nas séries do Netflix –se não, vamos acabar resolvendo nossas divergências políticas como criaturas bestiais dos filmes de terror.
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