Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.
Seu juiz: Ciclovia boa é ruim para carros
A Justiça emitiu uma sentença que interrompe a implantação de quase todas as ciclovias na cidade de São Paulo, preservando apenas o avanço das obras na avenida Paulista.
Há vários problemas nessa rede de caminhos para bicicletas inaugurados a toque de caixa pela administração do prefeito Fernando Haddad a partir de metade do ano passado. No entanto, ao mover uma ação para paralisar os trabalhos em vez de melhorar o projeto, a área do Ministério Público voltada para a cidade dá mais uma demonstração de que deveria se chamar "Promotoria de Habitação, Urbanismo e, sobretudo, do Automóvel".
Esta coluna noticiou o projeto de ciclovias em primeira mão. Depois, à medida em que as obras foram se espalhando pela cidade, ficou claro o ar de improvisação e voluntarismo, como descrevi em texto publicado em setembro.
Com todos os defeitos, no entanto, o prefeito eleito pela maioria dos votos em 2012 tem aprovação de 2/3 dos paulistanos para o projeto (mesmo em um momento em que sua administração é reprovada por ampla maioria). A Promotoria e a Justiça precisam levar em consideração o recado que a cidade está dando: deixem a rede de ciclovias ser implantada.
Ao acolher em decisão liminar (provisória) a ação proposta pela promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira, o juiz Luiz Fernando Guerra, da 5ª Vara da Fazenda Pública, considerou que faltou "prévio estudo de impacto viário global e local de sorte a mitigar efeitos deletérios como estrangulamento de tráfego de veículos em vias públicas".
Estudos para implantação de caminhos para bicicleta na cidade são antigos. O problema é que ao final, todos eles indicam a necessidade de uma opção política: a quem privilegiar, carros ou outros modos de mobilidade? Desde os anos 1960, os prefeitos paulistanos preferiram os automóveis particulares.
A decisão do juiz deixa claro que ele entende que tirar prioridade dos carros é ruim, que a redução das faixas para os carros ("estrangulamento") é, em sua opinião, um problema ("efeito deletério"). Segundo essa visão, ciclovias deveriam ser implantadas em espaços adicionais aos destinados a automóveis. Mas eles não existem. Como na história bíblica sobre o julgamento do rei Salomão (Reis, 3: 16-28), só há um bebê (faixa de rolamento). É necessário desagradar a uma mãe para agradar à outra.
Desde que tomou posse, Haddad avisou à cidade que alteraria a tradicional prioridade paulistana para os carros, criaria vias exclusivas para ônibus em prejuízo dos veículos particulares. Ao ver que não conseguiria criar os corredores que prometeu na campanha (não vai cumprir a meta), ampliou a rede de faixas exclusivas.
No primeiro momento, provocou "estrangulamento de tráfego de veículos", comerciantes e donos de carros reclamaram. O tempo passou, o trânsito voltou ao normal ou até melhorou, os ônibus ganharam velocidade, o efeito para a cidade foi benéfico.
O secretário Jilmar Tatto anunciou então a prioridade para a criação de ciclovias a partir de julho de 2014. O método "deixa que eu chuto" foi aplicado novamente. A equipe da prefeitura surpreende moradores de um bairro, que ao acordarem dão com uma faixa vermelha em suas ruas. Primeiro vem a gritaria, depois o povo se acostuma. Em alguns lugares, como a praça Villaboim, a prefeitura alterou o traçado; o trânsito de automóveis continuou estrangulado, mas os ânimos se acalmaram.
A administração municipal talvez ache politicamente incorreto dizer com todas as letras algo que foge ao entendimento do juiz, da promotora e de muitos críticos de medidas de restrição à circulação de carros: é necessário estrangular o trânsito de automóveis para melhorar a vida da cidade. Quanto melhor for a mobilidade dos veículos particulares, mais eles irão para a rua, pior será o congestionamento. Quanto mais atazanados e engargalados eles forem, menos veículos serão usados e melhor ficará o trânsito. O mesmo vale para vagas de estacionamento, em garagens públicas ou no meio fio: quanto mais existirem, mais serão usadas. Se não houver onde parar, as pessoas não usarão o carro.
Parar o automóvel em Londres, Paris e Nova York é missão quase impossível. Quem consegue, se surpreende com o alto custo. Estacionar um veículo todos os dias úteis do ano custa o preço de um outro carro. Como ensina um estudo clássico ("The High Cost of Free Parking", de Donald Shoup), oferecer estacionamento gratuito ou barato é o mesmo que dar gasolina grátis: é um incentivo ao uso do carro particular. Por isso, essas cidades sempre admiradas restringem o estacionamento.
Assim, o que pede o juiz Luiz Fernando Guerra não poderá ser oferecido. No mundo todo, as ciclovias são feitas para dar segurança aos ciclistas, mas também para reduzir o espaço dos carros, forçar os motoristas a pensar duas vezes antes de sair de automóvel. Haddad foi eleito, prometeu fazer isso e tem a aprovação da cidade.
Quanto aos problemas (o custo exagerado; a tinta que desgruda; a empresa que não tem nem um ano de vida e já conquista um contrato milionário da prefeitura; os buracos e intercorrências; e o uso de um mecanismo impróprio para evitar licitações demoradas, a "ata de registro de preços"), devem ser corrigidos ou punidos. Dá para fazer os aperfeiçoamentos, no limite punir responsáveis, sem parar as obras.
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Um forte sintoma de que a prefeitura está certa no projeto de ciclovias é o fato de que a Associação Comercial é contra: a entidade costuma se colocar suprapartidariamente contra boas coisas feitas na cidade, como a lei Cidade Limpa, a lei antifumo, as faixas de ônibus e, agora, as ciclovias.
Quando os comerciantes reclamam da redução de vagas de estacionamento, estão tratando como seu um espaço público (as vagas) que a cidade pode destinar ao benefício de muitas outras pessoas em vez de subsidiar suas lojas. Por exemplo: se, em vez de priorizar as bicicletas, o prefeito decidisse melhorar o trânsito dos automóveis, tirar vagas de estacionamento junto à calçada seria da mesma forma uma opção para aumentar a fluidez.
Nas outras batalhas, a Associação Comercial foi derrotada. Deve, provavelmente, ter o mesmo destino agora.
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